A HISTÓRIA
Nenhuma história tem um lado só, mas todas tem um começo. Esse é o início da construção e do fim Gilead. A trama começa 15 anos após os acontecimentos de O Conto da Aia, cuja apenas uma das personagens aqui tem conhecimento. É tia Lydia, que narra suas sombrias escolhas em uma espécie de memórias secretas. Esse nem sempre foi seu nome, antes ela era outra pessoa, uma juíza que lutava pela justiça. Até que Gilead explodiu e justiça passou a significar nada, assim como as mulheres.
Tia Lydia foi colocada diante uma escolha. Matar ou morrer. Já sabemos qual escolheu. Mas aqui conhecemos os pormenores de como mulheres foram levadas a criar e sustentar um sistema para silenciar outras mulheres. Mas o passado de Tia Lydia é tão nebuloso quando seu futuro. Como uma das pessoas mais poderosas em Gilead, ela mente, manipula e espiona a seu favor, ainda mais agora que seu grande plano está finalmente perto de ser executado.
“Esse tratamento tinha o objetivo de nos humilhar, de baixar nossa resistência, pensei; mas resistência ao quê? Não éramos espiãs, não estávamos sonegando informações secretas, não éramos soldados do inimigo. Ou será que éramos? Se eu olhasse no fundo dos olhos de um desses homens, será que encontraria um ser humano a me olhar de volta?” pág. 131 – Tia Lydia
Já Agnes não teve escolha alguma. Filha de um Comandante, enquanto cresce ela vai pegando algumas pistas da verdade, que nos revela em seu depoimento. Não é filha de seus pais e sim de uma aia. É por isso que todos acreditam que ela não é boa o suficiente: Agnes observa demais, pergunta demais. Mas de que outra forma ela poderia ver a beleza sem olhar para a feiura? E quando vê um casamento forçado se insinuando em seu futuro, Agnes precisa se questionar: como um passarinho criado em uma gaiola de ouro pode lutar contra seu captor?
Já Nicole nos relata que demoraria anos para saber que esse é seu nome de verdade. No Canadá, ela teve uma vida normal, mesmo que seus pais fossem rígidos e misteriosos como os outros não pareciam ser. Nicole não teve tudo, mas o suficiente para se tornar uma menina segura de si. Mesmo que não rebelde, ela é questionadora e enfrenta os problemas de cara. Por isso, quando o impensável acontece e Nicole descobre que toda a sua vida foi uma mentira, ela precisa escolher o quão longe pode ir pela verdade.
Três mulheres de idades, histórias e posições distintas. Suas vidas não têm relação uma com a outra, mas seus destinos se cruzarão com escolhas difíceis: se salvar ou se sacrificar umas pelas outras?
A SAGA
Os Testamentos é a continuação de O Conto da Aia, publicado há 35 anos e novamente feito um fenômeno mundial com o lançamento da premiada série de televisão baseada na história. Este livro vem para responder a pergunta mais feita a autora, Margaret Atwood: como que o regime de Gilead acabou?
É curioso como os dois livros e a série formam uma saga completa. Os Testamentos se passa quinze anos depois de O Conto da Aia, e para saber o que aconteceu com a protagonista anterior nesse meio tempo, só mesmo assistindo o seriado. E todos os acontecimentos narrados em Os Testamentos, que explicam porque Nicole, Agnes e Tia Lydia estão interligadas também é mais trabalhado na série de TV.
Acho muito interessante como duas mídias diferentes se uniram para contar, de formas distintas, mas interligadas e coerentes uma com a outra, uma trama tão poderosa e tão atual. Já adianto, vale demais a pena ler e assistir essa saga tão incrível e inspiradora, mesmo que difícil e assustadoramente real.
A NARRATIVA
Como O Conto da Aia, Os Testamentos simula documentos históricos, mas dessa vez, temos três narradoras diferentes. Uma delas é Tia Lydia, que está escreve suas memórias de forma secreta, com uma linguagem rebuscada, metáforas e reflexões profundas sobre a natureza humana, assim como um olhar cínico e irônico de tudo e todos.
Já Agnes é mais contida em seu testemunho. Ela observa de tudo, mas dá o benefício da dúvida para as pessoas. Sua narrativa é mais equilibrada e descritiva, narra as belezas em meio a feiura. Enquanto isso, na perspectiva de Nicole, a narrativa é como ela: jovem, ágil, crítica e desafiadora. É fascinante ter três visões tão diferentes de Gilead: de quem ajudou a construir o regime, de quem cresceu nele e quem o conhece por fora, a distância.
Margaret Atwood é realmente uma escritora excelente em narrativas em primeira pessoa, ela consegue agregar a personalidade do narrador ao texto. E apesar desse livro não ser tão poético como O Conto da Aia, ele também não é tão visceral e visual. Mesmo narrando muitas violências (especialmente nas parte da Tia Lydia) e não sendo uma leitura fácil nem rápida, é uma obra impactante e intrigante sem deixar o leitor física e mentalmente mal.
A TRAMA E AS MENSAGENS DO LIVRO
Os Testamentos têm um tom bem diferente de O Conto da Aia. Ele é jovem como duas de suas protagonistas e traz esperança. Novamente, não é uma história tranquila de ler, mas a revolta que as cenas mais pesadas trazem se transforma em alegria por ver que Gilead será destruída. A leitora se sente finalmente vingada, além de motivada de também lutar no mundo real.
A relevância de O Conto da Aia veio justamente do quão assustadoramente próximo da realidade a história é. E, desde que foi publicado, parecemos ainda mais próximos de um mundo como aquele conforme ideias nacionalistas exacerbadas e o extremismo político se tornam mais comuns. Em O Conto da Aia, testemunhamos como os direitos e a liberdade das mulheres podem ser facilmente apagados, assim como seus corpos e mentes abusados das mais variadas formas e diariamente.
“- Deus não é como eles dizem – disse ela. Ela disse que ou você acreditava em Gilead, ou acreditava em Deus, nos dois não dava.” pág. 324 - Agnes
A narrativa de O Conto da Aia mostra um recorte do que seria o dia a dia de uma vítima do regime, assim como uma das formas de lutar contra um sistema que te oprime, encontrando pequenas maneiras de resistir e lutar. Em Os Testamentos vemos a vida rotineira de Gilead sobre outra perspectiva, uma filha de Comandante. Mas também as maquinações internas do regime com Tia Lydia, e o impacto de um governo totalitário na política e cultura mundial, com Nicole.
Esse dinamismo de cenários e contextos deixa a trama mais interessante e rápida de ler. Mas como seu maior propósito é responder como Gilead foi destruída, Os Testamentos tem naturalmente mais ação, com manipulações políticas, espionagem e até mesmo fugas. Além disso, o livro ainda traz a incrível trajetória de três mulheres, mostrando especialmente o poder das novas gerações de mudar o mundo, mas não sem a ajuda das pessoas que lutaram antes delas.
OS PERSONAGENS
Outro aspecto fascinante de Os Testamentos são seus personagens. Há vários secundários curiosos, e igualmente bem desenvolvidos, mas nossas protagonistas são, obviamente, o que faz esse livro valer a pena. As três são extremamente humanas, com personalidades distintas e marcantes.
Começando por Agnes, que a princípio nos parece só uma menina mimada que não vê a realidade que está estampada na sua cara. Contudo, o arco narrativo dela é justamente sobre isso: como crescendo em um regime que a oprime ela poderia perceber o que está de errado? Mas de fato, com o tempo, Agnes começa a perceber e sua história nos mostra a importância de populações marginalizadas terem escolhas e oportunidades. Quando é oferecido a Agnes um caminho diferente do que ela esperava, a menina escolhe algo para se salvar, mas que depois usará também para ajudar outras.
Nicole foi com a qual mais me identifiquei. Ela vive uma vida não perfeita, mas boa e segura o suficiente. Ela conhece os horrores do mundo de forma distante e nem sempre se sente inclinada a fazer algo sobre isso. Até que ela descobre que sua vida é uma mentira e que de nada adianta ela ser livre se outras são prisioneiras. Nicole é a representação perfeita de que podemos usar os privilégios que temos para ajudar quem não tem, basta escolhermos fazer tal coisa.
É Tia Lydia, contudo, a personagem mais impressionante e complexa de Os Testamentos. Agnes e Nicole claramente foram criadas para serem heroínas, mas Lydia reside em um espaço cinzento entre heroísmo e vilania. Depois de vê-la como torturadora cruel em O Conto da Aia, aqui conhecemos sua história e como ela também foi roubada dos seus direitos e precisou fazer escolhas terríveis.
A história de Tia Lydia ressoa um pouco na de Serena em O Conto da Aia. Ela é uma vítima, mas ao mesmo tempo algoz. É fácil odiá-la, mas em certos pontos fácil entendê-la. Para mim, Lydia levanta uma questão complexa: quem tem “direito” de ser herói, de lutar por um mundo melhor? Afinal, ninguém é perfeito, nem mesmo quem muda o mundo. Mas, também, ela nos faz perguntar: qual o preço pela sobrevivência e é sempre que vale mesmo a pena pagá-lo?
A EDIÇÃO
Os Testamentos foi traduzido com perfeição por Simone de Campos. Não encontrei qualquer erro no texto. Achei o tamanho da fonte um pouco pequena, mas de um bom tipo. Gostei que há ilustrações diferentes indicando qual parte é da Tia Lydia, de Agnes e de Nicole, facilita no início a identificar as narradoras.
Contudo, minha edição veio com um probleminha. As primeiras páginas estavam grudadas umas nas outras na parte superior, problema facilmente resolvível com uma tesoura ou estilete. Contudo, como estava impaciente, tentei separar as páginas com os dedos e acabei rasgando algumas. O que me fez perceber que as páginas desse livro, apesar do bem-vindo tom creme, é de uma espessura média, não tão resistente assim.
Eu gosto bastante da capa de Os Testamentos, que é a mesma da edição original. Apesar dela não combinar com a edição de O Conto da Aia que tenho, o contraste do verde com o fundo escuro é lindo e as ilustrações das formas das três protagonistas casa muito bem com a história.
VALE A PENA LER?
Os Testamentos é de fato um livro escrito para agradar os fãs e responder suas perguntas, mas também para mostrar novas formas de luta e resistência para uma geração mais nova e uma cultura feminista bem diferente de 35 anos atrás.
O livro é uma continuação excelente, tanto de O Conto da Aia, como da série de televisão. O tom de esperança de Os Testamentos é o que precisamos em um mundo que está a beira de tornar algo como Gilead realidade.
Com protagonistas diversas, humanas e complexas, Os Testamentos mostra a força da jovens mulheres, assim como a necessidade de unir as novas e antigas gerações para construir um mundo melhor. A narrativa com três perspectivas diferentes torna a leitura mais ágil, assim como o conteúdo com mais ação.
Os Testamentos não é um livro fácil ou rápido, mas é necessário e inspirador. Uma das tramas de ficção especulativa mais poderosas dos últimos tempos e cujo impacto cultural, como de O Conto da Aia, será sentido por muitas e muitas gerações de mulheres.
QUOTES FAVORITOS
“O proibido é uma abertura para a imaginação. Foi por isso que Eva comeu o Fruto do Conhecimento, disse Tia Vidala: imaginação demais. Então era melhor não ficar a par de certas coisas. Senão suas pétalas acabariam esparramadas por aí.” pág. 23 – Agnes
“Você ficaria surpreso em saber como a mente se deteriora na ausência de outras pessoas. Uma pessoa sozinha não é uma pessoa inteira: existimos na relação com os outros. Eu era uma pessoa: perigava me tornar nenhuma.” pág. 164 – Tia Lydia
“- (...) Mas a lealdade a uma verdade maior não é traição, porque o plano de Deus não é o plano dos homens, e com toda certeza não é nem um pouco o plano das mulheres.” pág. 192
Título: Os Testamentos
Título original: The Testaments
Série: O Conto da Aia
Volume: 2
Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
ISBN: 9788532531568
Ano: 2019
Páginas: 448
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Muito boa essa resenha, vim ler ela antes de terminar de ler o livro e me ajudou a entender bem a história e a me interessar mais em dar continuidade a ela.
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