13.1.20

Resenha: Tempo de Graça, Tempo de Dor - Frances de Pontes Peebles


A HISTÓRIA

Maria das Dores nasceu em um grande engenho de açúcar em Pernambuco nos anos de 1930. Mas diferente de Maria das Graças, a patroinha, ela passa seus dias trabalhando na cozinha, ouvindo provocações dos outros empregados por causa da má reputação de sua falecida mãe. Dor nunca conheceu nada além da miséria e do desprezo e não é como se Graça a tratasse de forma diferente. Mas a menina mimada e irritadiça a ensinar a sonhar com mais e esse presente precioso cimenta a amizade das suas.

“Eu não era Jega, filha da puta, a ajudante de cozinha que viveria e morreria esquecida no engenho Riacho Doce. Era Maria das Dores, uma menina que deixaria sua marca no mundo. Uma menina que que seria lembrada.” pág. 34

Graça cresceu tendo suas vontades atendidas e uma imaginação fértil. Por razões que ninguém consegue bem explicar, se torna inseparável de Dor, que até mesmo recebe aulas junto dela. Mas é quando a família de Graça compra um rádio e as meninas passam a cantar para a mãe doente de Graça que suas vidas mudam. Graça acredita que elas podem se tornar cantoras de sucesso e que precisam deixar o engenho para isso. Dor não tem tanta confiança em seu talento, mas seguiria Graça para qualquer lugar, especialmente para fora do engenho.

A morte da mãe de Graça se transforma em uma ferida que nunca se cura. A garotinha sedenta por atenção do pai se torna uma jovem que não quer cumprir as vontades dele. Quando o pai declara que Graça terá que se casar, ela bola um plano para fugir, e Dor vai em seu encalço. Após provações terríveis elas vão parar no Rio de Janeiro. Em um bairro que respira música, as garotas descobrem que precisam mais do que sonhos e paixão pela canção para sobreviver. 


A NARRATIVA

Eu nunca havia lido um romance de época que se passasse no Brasil dos anos 30/40, por isso fiquei imediatamente curiosa para ler Tempo de Graça, Tempo de Dor. E não me decepcionei. Como a história é contada em forma de memórias, a narrativa é carregada de um ar nostálgico e confessional. Narrada em primeira pessoa, pela perspectiva da pobre Dor, a leitura cativa e se desenvolve com rapidez. 

Apesar de ser descritiva e reflexiva demais em alguns pontos, a escrita da autora é boa e flui bem. E Frances de Pontes Peebles consegue um feito difícil: ambientar o leitor a época em que a história se passa, agregando muitos detalhes culturais, sociais, econômicos e políticos a narrativa de forma muito orgânica, sem se transformar em uma obra didática.

Tempo de Graça, Tempo de Dor também me conquistou por seus diálogos rápidos, mas profundos, através dos quais os personagens expressam bem suas personalidades, mas também refletem sobre temas como amizade, amor, sucesso, finitude, etc.

A TRAMA

Tempo de Graça, Tempo de Dor é uma narrativa complexa que explora diversos temas a partir de um só: amizade feminina. Com a relação complicada e conturbada de Graça e Dor, o livro fala sobre música e o surgimento do samba, sobre fama e talento, sobre inveja e amor, sobre lealdade e rivalidade, sobre ambição e fracasso, sobre coragem e medo, e, especialmente, sobre opressão, luta e liberdade das mulheres.

A história se desenvolve com uma rapidez impressionante e em 300 e poucas páginas a autora conta a vida inteira de Dor e Graça. As reviravoltas são muitas e entre momentos de tensão psicológica também encontramos boas doses de drama, ação e pitadas de romance. As protagonistas enfrentam fugas, pobreza, sucesso inesperado e até viagens a Hollywood do mesmo tanto em que se engajam em discussões, brigas e romances. 

Tempo de Graça, Tempo de Dor fala bastante sobre os 30 e 40, e mostra a busca de muitas mulheres por realizarem sonhos que vão além do casamento. O livro nos permite visualizar bem o contexto social e econômico da época. O contraste entre o modo de vida glamouroso dos ricos e as batalhas diárias dos pobres é chocante, assim como o fato de que o nosso país estava se modernizando tão rápido, mas ainda mantendo muito de seus preconceitos e problemas sociais.


OS PERSONAGENS

Grande parte do sucesso de Tempo de Graça, Tempo de Dor se deve igualmente a seus personagens complexos e humanos. Mesmo os secundários possuem papel na trama e trajetória própria. Mas as protagonistas são tão fortes que ofuscam todos eles.

Por ser narrado por Dor, conhecemos intimamente o interior dessa personagem. Nascida pobre e sempre rejeitada por todos, ela é uma sobrevivente, uma mulher que usa sua inteligência para conquistar muito mais do que os outros acham que ela tem direito. Por mais que os outros personagens achem Dor fria e insensível, o leitor acaba sabendo a verdade: ela foi uma menina carente, uma jovem sedenta por amor e, por fim, uma mulher que aprendeu a se amar. Com sua trajetória de superação e crescimento, assim como sua lealdade a Graça, é impossível não amar e torcer por Dor do início ao fim. 

Graça cresceu tendo tudo, mas nada é o suficiente. É preciso lembrar que a vemos apenas pela perspectiva da Dor, tanto que em muitos momentos é difícil simpatizar com alguém com atitudes tão egoístas e ingênuas. Ela é como Capitu, jamais poderemos dizer se suas intenções eram boas ou ruins. Mas Graça é vítima da sociedade opressora tanto quanto Dor, ela nunca foi livre, e esse é um dos motivos que elas se tornam amigas.


Graça é infantil e autocentrada, mas uma sonhadora e uma inconformista, ela não aceita migalhas e ensinou Dor a lutar por mais, e por isso merece o nosso respeito. Afinal, Dor também não é perfeita. Ela sente inveja de Graça, algo que é recíproco. Na verdade, o relacionamento delas é tão complexo que soa real. Em uma cultura que diz que mulheres nunca são amigas de verdade ou traz na ficção amizades femininas que nunca passam por nenhum conflito, Tempo de Graça, Tempo de Dor nos mostra algo mais humano. 

Graça e Dor competem na mesma maneira que se apoiam, se protegem da mesma forma que se traem, se amam da mesma forma que se odeiam. É incrível ver um relacionamento feminino tão profundo em um livro, ainda mais porque a autora não excluiu sentimentos sexuais da equação. Em alguns momentos a linha entre o amor de amigas e o amor de amantes fica borrada na relação de Graça e Dor, o que torna a leitura ainda mais intrigante. Será que elas se tornaram um casal ou são diferentes demais para ficarem juntas? De fato, a abordagem tão natural com que Peebles trata a fluidez da sexualidade humana é também digna de elogios.


CONCLUSÕES FINAIS

Tempo de Graça, Tempo de Dor é aquele tipo de livro que rende páginas e mais páginas de discussões. Com uma trama tão rica, esse romance de época é uma viagem ao passado, além de conhecer o Brasil dos anos 30/40 e o surgimento do samba, refletimos de forma crítica sobre a cultura e situação política da época. 

A obra também ainda permite análises aprofundas sobre opressão, amizade e sexualidade feminina, assim como a busca pelo sucesso. A narrativa de Tempo de Graça, Tempo de Dor é muito boa, mas parcial: através da protagonista tão humana, e por isso igualmente dona de seus pré-conceitos, ficamos em dúvida se sua amiga, o tipo de pessoa que parece destinada a ser uma estrela musical, é ou não alguém a quem devemos nos cativar. Simplesmente brilhante, Tempo de Graça, Tempo de Dor foi um dos melhores livros que li em 2019 e me deixou sedenta por mais obras da aurora.

QUOTES FAVORITOS

“Assim, enquanto menininhas como Graça brincavam com bonecas e vestidos, eu aprendia outras brincadeiras. Brincadeiras onde era força e esperteza significava sobrevivência.” pág. 16

“o som nunca é simplesmente som. O som é memória.” pág. 51

“Eu podia suportar mil golpes de qualquer punho, mas palavras? As palavras sempre acabariam comigo.” pág. 75

“- Você acha que conhece o mundo, Jega? – Nena balançou a cabeça. – O mundo vai engolir você.” pág. 77


Título: Tempo de Graça, Tempo de Dor
Autora: Frances de Pontes Peebles
Editora: Arqueiro
ISBN: 9788530600419
Ano: 2019
Páginas: 368
Compre: Amazon

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1 comentários:

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