A HISTÓRIA
Em 1963, Eva Bruhns é uma jovem alemã como qualquer outra. Ela era pequena demais para se lembrar de como a vida durante a Segunda Guerra Mundial era. Trabalhadora e ligada na cultura britânica e americana, ela não é do tipo que se contenta em ser apenas uma esposa silenciosa. Contudo, ela espera que seu namorado, o rico e estranho Jürgen a peça em casamento logo. Talvez assim ela possa finalmente colocar uma distância entre ela e sua família.
Os pais de Eva administram um pequeno restaurante em uma das partes mais pobres de Frankfurt. Assim como eles, sua irmã mais velha, uma enfermeira pouco sociável, não fala sobre a guerra. No fundo, Eva é mais apegada a seu irmão mais novo, um menino alegre e curioso que sempre está na companhia do velho cachorro da família.
Por sua facilidade com o polonês e demais línguas, Eva acabou se tornando uma tradutora e intérprete, e passa seus dias lidando desde contratos de negócios a manuais de produtos estrangeiros. Um dia, contudo, ela acaba sendo convocada pelo rude advogado David Miller para traduzir os depoimentos testemunhas polonesas no que mais tarde descobrira ser os controversos julgamentos do campo de concentração de Auschwitz.
A opinião pública se divide sobre a necessidade dos caros e difíceis julgamentos, mas após ouvir a primeira testemunha narrar todos os sofrimentos terríveis que sofreu na guerra, Eva percebe o quanto não só seu país, mas a sua família precisa que esse julgamento aconteça. A jovem sabe que a verdade sobre os campos de concentração e as atrocidades que os cidadãos alemães cometerem precisam vir à tona. A intérprete só não sabia que acabaria esbarrando em segredos obscuros de sua família e um lado da natureza humana tão sombrio que ela não imaginava existir.
AS TEMÁTICAS DO LIVRO
A Intérprete pode ser resumido em duas perguntas: que tipo de pessoas ferem e matam tão facilmente quanto soldados nazistas nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial? E por que nós imaginamos que pessoas que cometem atos tão terríveis não podem ser como qualquer um de nós?
Esse livro se utiliza de uma abordagem muito comum em narrativas de guerra: em vez de focarem em grandes nomes, nos revelam como pessoas comuns agiram em tal tempo. E, para as perguntas que A Intérprete busca responder, o ponto de vista escolhido foi perfeito. Primeiramente, os acontecimentos da Segunda Guerra são retratados em segunda mão, através de depoimentos dos sobreviventes. O que nos dá uma boa noção dos horrores que aconteceram sem tornar a obra gráfica demais. Segundo, a princípio podemos perguntar o que diabos uma jovem tradutora teria em relação com a guerra e a resposta é tudo. A Intérprete revela bem como mais que comandantes e presidentes, são as pessoas comuns que realmente fazem, vivem e sofrem o conflito. São pessoas comuns que machucam e matam por preconceito, medo, obediência e outros fatores muito mais complexos do que quem nunca passou por uma guerra pode imaginar.
Mais do que isso, A Intérprete nos leva para os bastidores dos julgamentos de Auschwitz, mostrando como a verdade precisa ser falada e a justiça feita. Contudo, o livro é claro, apontar culpados é mais difícil do que imaginamos em situação de guerra, justiça pode se transformar em vingança facilmente, a lei pode ser dobrada de muitas formas e, mesmo que descobrir e apontar criminosos de guerra seja necessário, isso não apaga a dor e a revolta de nenhuma das vítimas. Contudo, mais uma vez, julgamentos como esse precisam acontecer e precisamos falar sobre os horrores da guerra para tentar não repetir o mesmo.
Uma parte interessante e inusitada de A Intérprete é que o livro mostra como a violência da guerra perpetua por diferentes gerações, destrói famílias inteiras e fere a saúde mental de toda uma nação. Todos os personagens apresentam sintomas depressivos e ansiosos e traumas tão grandes e difíceis de se esquecer e de serem tratados. Nesse ponto, A Intérprete nos mostra como auxílio psicológico é tão importante no pós-guerra, como as pessoas precisam de ajuda profissional para entender o que se passou com elas ou com seus pais e avós, e como seguir a vida tendo vivenciado (em primeira mão, ou através de relatos) violências tão profundas.
TRAMA, NARRATIVA E PERSONAGENS
Com assuntos tão profundos, a história de A Intérprete é mais impactante por causa deles do que de possíveis reviravoltas na trama. Mas mesmo previsíveis, as surpresas que o livro traz são carregadas de tanto significado que nos chocam mesmo assim. A Intérprete é um romance histórico cuja trama é tão carregada de tensão psicológica, que o leitor fica vidrado no início ao fim. Mesmo narrando os acontecimentos rotineiros da vida da protagonista, sendo que os próprios julgamentos se arrastaram por tanto tempo que se transformam em parte da rotina dela, A Intérprete mal nos deixa piscar durante a leitura.
Parte disso, acredito, vem da narração em terceira pessoa envolvente e bem conduzida. Os diálogos são reduzidos, mas cada fala dos personagens é importante para a história. Curiosamente, a narração bastante descritiva não é chata, pelo contrário, saber detalhes mínimos da movimentação, das roupas e das expressões dos personagens contribuem bastante para o clima de tensão do livro. Eu gostei que, em alguns momentos, a narrativa se desprende da protagonista e nos dá vislumbres dos outros personagens, como a irmã e o namorado de Eva, o que é essencial para uma das maiores mensagens do livro: todos somos humanos, capazes de coisas terríveis e sofremos com nossas escolhas.
Nesse quesito, todos os personagens contribuem para essa mensagem. Assim, acabam que eles soam tão humanos que é difícil decidir se gostamos ou não deles. Todos possuem defeitos e qualidades e fazem ações bondosas e ruins. Eva, por exemplo, é gentil com estranhos, mas rude com a própria família. Ela quer que a verdade sobre a guerra venha à tona, mas se deu ao luxo de, a vida inteira, ignorar a sua relação e a da sua família com os eventos horríveis ocorridos durante o conflito.
VALE A PENA LER?
Em resumo, A Intérprete é uma obra inteligente e que traz reflexões profundas. Com a sensibilidade necessária, o livro revela a violência nos campos de concentração e os bastidores dos julgamentos de guerra. A tensão psicológica que domina a história compensa pelos acontecimentos previsíveis e tornam a leitura viciante. Mas, o que faz A Intérprete valer a pena são suas mensagens: todos somos humanos e carregamos tanta bondade quanto maldade dentro de nós.
O livro ainda mostra como todos temos culpas nos horrores ocorridos na guerra, que pessoas comuns também cometem violências e a necessidade da exposição da verdade para não só as vítimas, mas toda uma nação pós-guerra possa começar a se curar. A Intérprete é uma obra intensa e emocionante. Eu li o livro em dois e, da metade para o final, chorei diversas vezes e terminei a história me sentindo destruída. Contudo, é uma leitura necessária, que nos faz encarar algumas verdades sobre a vida e o que é ser humano. Um dos melhores livros que li em 2019 e nos últimos anos, com certeza.
QUOTES FAVORITOS
“Seus olhos costumavam mostrar uma expressão inquieta, como se esperasse que uma catástrofe se abatesse sobre ela a qualquer momento. Eva desconfiava que aquilo assustava os homens.” pág. 8
“- Não é verdade, Jürgen, lá não está a maldade. Ou algum demônio. São pessoas comuns. E esse é o problema.” pág. 174
“- Eles? Quem eram eles? E vocês? Quem eram vocês? Faziam parte daquilo. Vocês eram como eles! Vocês tornaram aquilo possível. Não mataram, mas permitiram que marassem. Não sei o que é pior.” pág. 247
Título: A Intérprete
Título original: Deutsches Haus
Autora: Annette Hess
Editora: Arqueiro
ISBN: 9788530600167
Ano: 2019
Páginas: 272
Compre: Amazon
Muito interessante esse livro!
ResponderExcluirBeijinhos ;*
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Oi Ana, vou adicionar ele em minha lista de desejados agora mesmo, para te sido um dos melhores que já leu dos últimos anos é porque é bom mesmo, adoro livros que são intensos.
ResponderExcluirBeijos
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