26.11.18

Resenha: Vox - Christina Dalcher


A HISTÓRIA

Ninguém esperava que chegasse a tanto. Mas depois que um presidente ultraconservador foi eleito e uma onda de retorno aos valores religiosos antigos tomou o país, tudo se tornou possível. Inclusive colocar uma pulseira em todas as mulheres e meninas, que as permitem dizer apenas 100 palavras por dia. Caso a cota seja ultrapassada, a mulher “infratora” levará um choque. Isso quando as que são pegas cometendo delitos mais graves, como fazer sexo antes do casamento ou se relacionar com outra mulher, são humilhadas e castigadas em TV aberta e mandadas para fazendas de trabalho compulsório.

“- (…) É uma organização com enorme peso religioso. - Jackie se inclinou pela janela, para ver melhor. - E são principalmente homens. Homens conservadores que amam seu Deus e seu país. - Ela suspirou. - As mulheres, nem tanto.” pág. 24

A Dra. Jean McClellan é uma das que nunca acreditou que chegaria tão longe. Mas agora que perdeu seu emprego e tem que economizar suas palavras, ela é tomada pela melancolia. Mais do que sofrer por si, Jean sofre pela sua própria filha. Como uma especialista em neurolinguística, ela sabe que quanto mais tempo a filha ficar com a maldita pulseira, mais sua capacidade linguística diminuirá. Isso se ela não crescer e se tornar completamente alienada, como seu filho mais velho, que verdadeiramente acredita que só os homens devem estar no poder e que o Estado deve gerir tudo com mão de ferro – e os dois pés na religião. Mas Jean é só uma entre as muitas mulheres silenciadas. O que ela poderia fazer para mudar alguma coisa?

A oportunidade surge quando o irmão do presidente sofre um acidente e perde sua capacidade de falar coerentemente, um problema no qual Jean era especialista. Ela até estava a um passo de criar um soro que resolveria a questão, antes de perder o emprego e ganhar uma pulseira que conta suas palavras. Surpreendentemente, o governo decide que Jean é a única que pode ajudar o irmão do presidente e está disposto a fazer concessões a ela e sua família, se ela aceitar trabalhar no projeto. Por um lado, Jean fica enojada com a ideia de trabalhar para seu algoz. Contudo, a situação acaba se mostrando uma oportunidade de Jean recuperar não só a sua voz, mas a de todas as mulheres.


A LEITURA E AS CRÍTICAS POLÍTICAS DO LIVRO

Eu fiquei louca para ler Vox assim que tomei conhecimento do lançamento da obra. Foi sua semelhança com O Conto da Aia, um dos meus livros favoritos da vida, que me fez querer ler o trabalho de Christina Dalcher. E eu não me arrependi. Fiquei viciada em Vox logo nas primeiras páginas, e só demorei três dias para terminá-lo porque não queria me despedir dos personagens tão cedo.

As primeiras 100 páginas de Vox são um verdadeiro tapa na cara, já que narram um pouco de como um político ultraconservador e religioso ascendeu ao poder ao ponto de calar todas as mulheres. O choque vem da semelhança com a realidade, não só do tal político e desse movimento de retrocesso, mas da inércia da protagonista diante o que estava acontecendo. Quantas de nós, mulheres, não evitamos nos envolver com movimentos de lutas sociais simplesmente porque já estamos em uma posição social relativamente confortável? Se Vox fosse apenas uma coisa, seria um alerta de que a luta pela igualdade de gênero está longe de acabar e sim que apenas começou.

E essa é a genialidade por trás de Vox, que tornou o livro tão falado ao redor do mundo. Ele é assustadoramente real, até mesmo mais que O Conto da Aia. Apesar de não superar a obra de Margaret Atwood, Vox nos apresenta a um futuro distópico mais verossímil. Depois da eleição presidencial de 2018, a trama desse livro é algo que poderia acontecer amanhã mesmo, aqui no Brasil ou em qualquer lugar do mundo. Pois, como Vox nos faz perceber, silenciar as mulheres não é tão difícil assim. Mesmo sendo metade da população, ainda somos uma minoria em termos sociais, políticos, econômicos, etc. E, no fim, é mais fácil que o ódio e a vontade de manter os privilégios masculinos sejam mais fortes que as nossas palavras e os nossos gritos por igualdade.

 - Saiba mais sobre O Conto da Aia na resenha do livro


Em questão de trama, a de Vox foi bolada com inteligência e desenvolvida com agilidade. Já que estamos comparando com O Conto da Aia, Vox é mais movimentado, com mais cenas de ação e enfrentamento, além de revolução. O livro ainda conta com as subtramas do amor proibido da protagonista e de seus problemas familiares, tudo isso, claro, permeado pela luta social por voz e direito na qual ela se envolve.

“- Você não tem nada a ver com isso, mãe. A decisão é do meu pai.
Talvez tenha sido o que aconteceu na Alemanha com os nazistas, na Bósnia com os sérvios, em Ruanda com os hutus. Às vezes eu refletia sobre isso, sobre como as crianças podem se transformar em monstros, como aprendem que matar é certo e a opressão é justa, como em uma única geração o mundo pode mudar tanto até ficar irreconhecível.” pág. 102-103

No início, fica difícil entender a relação do trabalho da protagonista em neurolinguística com a trama principal. Mas, ao mostrar até onde o governo está disposto a ir para silenciar a população, Vox faz um alerta importante: em um mundo onde todo mundo pode dar sua opinião, quem está no poder fará de tudo, usará todas as armas (inclusive a ciência) para calar seus inimigos. É interessante as reflexões que Vox traz sobre a importância do falar, tanto literalmente quanto metaforicamente. Sem a linguagem, não somos capaz de nos comunicar e nos desenvolvemos de forma incompleta. De certa forma, é a linguagem que nos faz humanos, já que é uma habilidade exclusiva da nossa espécie. E, mais do que isso, sem um lugar de fala, grupos desprivilegiados estão fadados a serem esmagados pela opressão.

Minha única reclamação contra Vox é, infelizmente, a narrativa. Dalcher tem uma boa escrita e acompanhar a história em primeira pessoa torna-a mais impactante. A obra constrói todo um contexto de opressão e revolta política tão reais que causa arrepios na espinha e tensão em qualquer leitor. Contudo, ao misturar flashbacks e a imaginação da protagonista do que poderia acontecer ao que realmente está acontecendo, Dalcher tornou alguns momentos da trama bastante confusos de acompanhar. Muitas vezes tive que voltar algumas páginas para entender direito o que se passou e o que foi dito. Mas, isso não apaga o brilho e a importância da trama e terminei Vox realizada por ter tido oportunidade de ler uma obra tão maravilhosa.


OS PERSONAGENS

Outro aspecto forte de Vox são seus personagens, extremamente humanos e complexos, e com os quais nos identificamos. Como Jean, a maioria de nós escolhe se manter neutro diante mudanças políticas, sempre acreditando que as coisas “não podem piorar”, quando podem. Ela é uma personagem feminina bastante forte, uma cientista brilhante, uma mãe dedicada e um ser humano que tenta encontrar um lugar em um mundo que, muitas vezes, pode ser cruel. Me identifiquei muito com algumas questões de Jean, principalmente de como contribuir para o movimento feminista quanto outros aspectos da nossa vida trazem problemas que parecem muito mais urgentes? 

Entretanto, como a própria personagem aprende ao longo de Vox, contribuir para um movimento social não é só sobre ir a passeatas. Muitas vezes é se opor as pequenas opressões do dia a dia. É questionar o preconceito e o ódio que surgem dentro da nossa própria casa, que vem das pessoas que amamos. É, às vezes, lutar pelo o direito de fala, mas não nosso, e sim de outras pessoas. Contudo, o ponto mais interessante e forte da jornada de Jean durante o livro é perceber que importa sim. Que o que acontece na política, que as leis que são aprovadas, que o estão ensinando nas escolas, que o que está sendo dito na televisão é problema de todos nós. E que quando nos abstemos de nos envolver, estamos dando permissão para que ideias fascistas, preconceituosas, violentas e cruéis cresçam. 

Mas não é fácil lutar, muito menos resistir. Jean aprende isso, assim como outros personagens. Os secundários de Vox, como Jean, fogem de clichês e são personagens que nos desafiam. Às vezes gostamos deles, às vezes os odiamos. Quem mais me fez sentir assim foi o marido de Jean, Patrick, ora gentil, ora cruel. O personagem causa algumas surpresas ao longo da história, mas foi difícil, mesmo após terminar o livro, definir como me sinto sobre ele...

A EDIÇÃO

A tradução de Vox está perfeita e não encontrei erro algum no texto. A diagramação é simples, sem grandes detalhes, mas o tamanho e tipo de fonte são bons. Como sempre, gosto das páginas cor de creme. Também fiquei feliz com a capa de Vox. Apesar de simples, ela é impactante e passa bastante sobre o tema principal do livro: o silenciamento das mulheres.


CONCLUSÕES FINAIS

Vox não é um livro simples, e foi desenvolvido com maestria. A narrativa deixa a desejar em alguns momentos, com trechos confusos e que misturam muito passado, presente e imaginação. Contudo, a trama explosiva e cativante nos leva para uma jornada distópica assustadoramente real. A ascensão e manutenção de um governo fascista e conservador em Vox em muito lembra a vida real, assim como os planos malignos de tal governo de silenciar seus inimigos, as minorias, obviamente, em especial as mulheres. Assim, Vox traz uma lição sobre a importância e necessidade do feminismo, assim como da linguagem. O livro demonstra como é ela que nos torna humanos, de certa forma, e como ter o lugar e o poder de falar é essencial para revoluções sociais e políticas. Uma leitura impactante e assombrosa por sua verossimilhança, recomendo Vox para absolutamente todos, especialmente as mulheres. São livros como esse que nos convocam a luta e nos lembram de continuar resistindo. 

QUOTES FAVORITOS

“- Estamos a um passo de voltar a pré-história, meninas. Pensem nisso. Pensem onde vocês vão estar, onde suas filhas vão estar, quando os tribunais atrasarem os relógios. (…) Pensem em acordar um dia e descobrir que não têm voz em nada.” pág. 16

“De repente não me importo mais com o choque ou a dor. Se eu continuar gritando em meio a ela, se mantiver a raiva no máximo, afogar a sensação com bebida e palavras, será que a eletricidade vai continuar a correr? Será que isso acabaria me matando?” pág. 33

“- Vai se foder.
Ele está com raiva, magoado e frustrado. Mas nada justifica as palavras que saem de sua boca em seguida, as que ele jamais poderá retirar, as que cortam mais fundo do que qualquer caco de vidro e me fazem sangrar por inteiro.
- Quer saber, amor? Acho que era melhor quando você não falava.” pág. 64

“Não creio que eu realmente acreditasse que isso um dia aconteceria. Acho que nenhuma de nós acreditava. Depois da eleição começamos acreditar.” pág. 179

“Estive afastando Steven do pensamento durante todo o dia, e agora a tristeza é desarrolhada e se derrama de mim. Houve muitas vezes em que eu quis culpá-lo, mas não posso. Os monstros não nascem assim, nunca. Eles são feitos, pedaço por pedaço e membro por membro, criações artificiais de loucos que, como o equivocado Dr. Frankenstein, sempre acham que sabem mais.” pág. 211

Título: Vox
Título original: Vox
Autora: Christina Dalcher
Editora: Arqueiro
ISBN: 9788580418897
Ano: 2018
Páginas: 320
Compre: Amazon

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2 comentários:

  1. Olá, Ana.

    Hoje vi a Paola do Livros&Fuxicos indicando o livro e logo depois encontrei sua resenha em minha caixa de e-mail. Me interessei muito pela trama e pelo fato de ser uma distopia, tenho até ideia de quando irei ler este livro.

    Beijos,

    Ana.

    www.umlivroenadamais.com

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  2. Oi
    Li esse livro e fiquei em um estado que não sai até agora: de choque. É tão possível, tão crível que é assustador de mais. A situação política de nosso país não facilita em nada. Estamos constantemente com medo. Como mulheres, já somos íntimas do medo, mas vem piorando com o passar do tempo. No lugar de termos mais segurança, temos mais medo a cada momento. Medo de sermos violadas, mortas, silenciadas, subjulgadas, rebaixadas.
    Espero que um dia isso tudo se torne somente ficção mesmo, e não possibilidades horrendas.

    Vidas em Preto e Branco

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