28.2.18

Resenha: Não Me Abandone Jamais - Kazuo Ishiguro


A HISTÓRIA

Kathy H. teve uma carreira de cuidadora mais longa do que a maioria dos seus semelhantes. Mas, mesmo sendo muito boa no que faz, é inegável sua solidão e tédio na rotina que se resume a ir de um paciente até o outro. Assim, viajando sozinha pelas estradas da Inglaterra, Kathy acaba recordando bastante do seu passado, de sua infância em Hailsham e início da vida adulta no Casario. Como os colegas, Kathy sempre foi lembrada que era muito sortuda e especial por ser uma aluna de Hailsham. Espécie de internato no interior do país, Hailsham é um mundo a parte, onde os alunos crescem com tranquilidade e a melhor educação que poderiam ter. Kathy é feliz em Hailsham, apesar das desavenças constantes com a melhor amiga, Ruth, e de não compreender bem seu relacionamento com Tommy, um menino que não se encaixa muito bem.

Mas, entre as aulas de artes e filosofia, as brincadeiras no ginásio, as fofocas no refeitório, os beijos roubados dos novos casais, paira uma verdade que os alunos conhecem bem, apesar de ainda não entenderem. Conforme vão crescendo e avançando de série, se torna cada vez mais difícil ignorar o que está acontecendo. Tudo em Hailsham serve a um propósito maior, de preparar os alunos para seu futuro. Afinal, eles foram criados exclusivamente para, quando adultos, doarem todos os seus órgãos vitais após uma curta carreira de cuidadores daqueles que já estão fazendo suas doações. Contudo, se em Hailsham era fácil se esquecer do seu destino certo, no Casario fica ainda mais difícil. 

“qualquer lugar além de Hailsham era, para nós, uma terra de fantasia; tínhamos uma noção muito vaga do mundo exterior e do que era ou não era possível lá fora.” pág. 85

Antes de iniciar suas carreiras de cuidadores, os alunos vão para essas casas, nas quais, sem aulas e projetos, podem se dedicar a conhecer uns aos outros, a ler e até mesmo fazer curtas viagens. Mas, no Casario, Kathy encontra dificuldade para se adaptar. Ela não consegue se aproximar dos moradores que não vieram de Hailsham e o namoro sólido de Ruth e Tommy afasta-a de ambos. Contudo, a maior questão no Casario é a pergunta que paira no ar, perigosa: como seria a vida desses jovens se não estivessem destinados a ser doadores? E, em meio a tantas lembranças, algumas tristes e outras alegres, muitas confusas sobre coisas que fugiam e ainda fogem do seu entendimento​, Kathy precisa lidar com o presente. O fato de que carreira de cuidadora está acabando e que, como Tommy e Ruth, ela precisará passar pelo processo de doação e que já é tarde demais para todos eles.


A LEITURA: TRAMA E NARRATIVA

Não Abandone Jamais é um daqueles "clássicos contemporâneos" que todo mundo, pelo menos uma vez, já ouviu falar. O título não me soou estranho quando li notícias sobre o autor, Kazuo Ishiguro, ter ganhado o Prêmio Nobel de Literatura em 2017. E, por causa disso, fui ler um pouco mais sobre a obra dele e fiquei intrigada pela sinopse de Não Me Abandone Jamais. Apesar de ter ficado feliz em receber um exemplar do livro através da editora, ele acabou ficando alguns meses esquecido na minha estante, já que sabia que essa não seria uma leitura fácil.

Mas, de férias da faculdade, resolvi encarar a obra e, apesar da leitura lenta, terminei apaixonada e de coração partido por Não Me Abandone Jamais. A narrativa em primeiro pessoa, através da perspectiva de Kathy, dá um tom bastante confessional e nostálgico para o livro. A protagonista olha para seu passado, reavivando emoções em si mesma (e no leitor) conforme narra acontecimentos (bastante cotidianos) da sua vida, sem deixar de colocar novas interpretações para tudo baseando-se em seus conhecimentos do presente. Muito descritiva em alguns pontos, além de bastante intimista, a escrita torna a leitura arrastada ao focar tanto no que aconteceu quanto no que os personagens sentiram naquele momento. Kathy se coloca a explicar cada significado oculto do que está narrando, o que é justificável em um livro que se trata das memórias da personagem, mas que acaba cansando o leitor.

Dividido em três, Não Me Abandone Jamais segue mais ou menos uma linha cronológica, com a primeira parte narrando, de forma não muito linear, os acontecimentos da infância de Kathy; a segunda sua breve juventude no Casario; e a terceira, sua carreira de cuidadora, já adulta. Essa organização faz muito sentido, quando pensamos na mensagem que a obra quer abordar, como falarei mais abaixo. Mas, em questão de trama, Não Me Abandone Jamais deixa um pouco a desejar. Diferente do que se espera de uma ficção científica contemporânea, falta ação, grandes segredos a serem descobertos ou até mesmo movimentação de rebeldia por parte dos personagens. Não há luta contra o sistema ou mesmo indignação contra a situação a qual os personagens são submetidos. 

Novamente, não é essa a proposta do livro, mas não deixei de sentir falta de uma história com mais altos e baixos, e acontecimentos que fazem nosso coração acelerar. Somado a narrativa, a trama sem grandes reviravoltas ou ação deixa a leitura arrastada, e faz com que o leitor demore a se cativar. Mas, na simplicidade da história e no tanto que ela se aproxima da vida real é que está o brilhantismo dessa obra. Não Me Abandone Jamais usa a ficção científica como contexto apenas, uma forma de situar sua trama no tempo e permitir que o leitor preste atenção no que é importante: os personagens que se aproximam muito de pessoas que poderíamos conhecer no nosso dia a dia e que tiveram vidas não muito diferentes das nossas. E o que podemos aprender com eles.


AS CRÍTICAS E MENSAGENS DA OBRA

Até pouco além da metade de Não Me Abandone Jamais, é difícil definir sobre o quê exatamente a obra se trata, visto que logo de cara percebemos que não é uma trama de rebeldia ou revolução. Mas, quanto mais sabemos sobre a vida de Kathy, mais entendemos que o livro se trata, bem, sobre a própria vida. Os significados da existência é ponto principal de Não Me Abandone Jamais. Diferente de nós, os personagens sabem muito bem porque vieram ao mundo, mesmo que o significado de suas vidas tenha sido atribuído por terceiros e não por eles mesmos. Uma das questões levantadas pela obra, e que provoca grande parte da sensação de incômodo que o livro causa, é: como viver uma existência que já foi mapeada, inteiramente definida? 

“Suas vidas já foram mapeadas. Vocês se tornarão adultos e, antes de ficarem velhos, antes mesmo de entrarem na meia-idade, começarão a doar órgãos vitais. Foi para isso que todos vocês foram criados. (...) Vocês foram trazidos a este mundo com um fim, e o futuro de vocês, de todos vocês, já está decidido.” pág. 103

Como não se deixar abater pela certeza inevitável do fim? Seja ele a doação para os protagonistas e a morte, natural ou não, para nós leitores. É outra questão que Não Me Abandone Jamais levanta. Ainda há uma discussão sobre liberdade. Os protagonistas podem escolher que arte fazer, que livros ler, com quem transar, mas tudo isso importa diante um final inevitável? Nesse ponto, a obra é clara: vale a pena se entregar as pequenas escolhas em uma vida que você não escolheu. De viver os pequenos momentos como se fossem gigantescos, afinal, não é a vida feita de felicidades e tristezas rotineiras, e não de grande acontecimentos cinematográficos? Mas, se tais escolha minúsculas são apenas uma ilusão para esconder a falta de controle no próprio destino, Não Me Abandone Jamais não nos dá resposta clara. 

É impossível não se identificar com a protagonista Kathy e passar a se perguntar sobre a nossa própria existência. Há muito o que podemos decidir, mas isso é anulado pelas partes que não podemos escolher da nossa vida, ou ambos se compensam? Em meio a tudo isso, Não Me Abandone Jamais aborda os conflitos comuns a todos nós. O momento da perda da inocência e magia da infância; a emoção e medo da descoberta do mundo “do lado de fora” na juventude; a nostalgia da maturidade, a tristeza por tempos que não voltam; a solidão para encarar um destino imutável, e muito mais. Infelizmente, é esse ponto que o livro parte os nossos corações. Ele mostra que não há alegria sem tristeza, prazer sem dor, boas memórias sem lembranças ruins. E, para mim pelo menos, deixa a mensagem que o significado da existência é a existência em si, que só temos o momento presente e que ele deve ser aproveitado, porque viver de verdade é o faz a vida valer a pena.

Não Me Abandone Jamais ainda proporciona, no final, uma reflexão secundária sobre os limites da ciência e da ambição do próprio homem em prolongar sua vida o máximo que pode. Assim como nos faz refletir sobre a nossa noção de quem é humano e quem não é. Afinal, clones têm alma? Ou seriam só subprodutos da tecnologia médica, cópias vivas de outra pessoas que, por si só, são insignificantes? Nos parece chocante, nesse momento, gerar e criar clones apenas para abastecer bancos de órgãos. Mas, não é uma realidade muito distante e que, na literatura, nos desafia a encarar os limites da ética e moral da nossa sociedade real.


A EDIÇÃO

Não Me Abandone Jamais tem uma boa edição. A tradução é excelente e o texto não contém erros. A diagramação simples nos permite focar nas importantes mensagens da história. A capa, aparentemente minimalista, acaba sendo interesse, perfeita para a história, além de bonita. O tom metalizado de prata nos passa bem o ar futurístico da história. Assim como o desenho do homem vitruviano com partes do corpo marcadas lembra o pano de fundo assustador da história sobre clones doadores de órgãos.

CONCLUSÕES FINAIS

Impactante e lento, Não Me Abandone Jamais não é uma leitura fácil. Ao mesmo tempo em que nos encanta e apaixona ao nos fazer pensar sobre o significado da nossa existência e do que faz a vida valer a pena, o livro nos incomoda - e parte nosso coração - com questões sobre a inevitabilidade de certos destinos (como a morte). Sem falar que a obra ainda nos fazendo refletir sobre (a assustadora falta de) limites da ciência e da ética humana. Apesar da trama simples, sem grandes acontecimentos ou reviravoltas, os personagens tão humanos e parecidos com qualquer pessoa com a qual poderíamos cruzar na rua nos cativam e emocionam. 

Não Me Abandone Jamais vale a pena pelos sentimentos reflexivos que provoca, e pelas questões profundas da natureza e vida humana que aborda. O livro de ar nostálgico e confessional se tornou um dos meus “clássicos contemporâneos” favoritos, que recomendo para todos. Ah, e a leitura fica ainda melhor com a música que dá nome a Não Me Abandone Jamais ("Never Let Me Go", da fictícia Judy Bridgewater, que ganhou uma versão bem real por causa do filme adaptado do livro) tocando sem parar.

“Mas havia uma música aquela fita que, para mim, era muito especial: a faixa três, 'Não me abandone jamais’. É uma música lenta, bem coisa de madrugada, bem americana” pág. 89


QUOTES FAVORITOS

você está na expectativa, mesmo que não saiba bem disso. Está à espera do momento de dar-se conta de que de fato é diferente deles; de que existem pessoas lá fora, como Madame, que não odeiam você, nem leu desejam nenhum mal, mas que ainda estremecem só de pensar em você - de lembrar como você veio a este mundo é por quê” pág. 50

Conversando com um doador meu, outro dia, ele se queixou de que nossas lembranças, até mesmo as mais queridas, desaparecem espantosamente depressa. Mas eu não concordo muito com isso. As lembranças que eu mais prezo, essas não são de sumir nunca. Perdi Ruth, depois perdi Tommy, mas não vou perder a lembrança que tenho deles.” pág. 341

Título: Não Me Abandone Jamais
Título original: Never Let Me Go
Autor: Kazuo Ishiguro
Editora: Companhia das Letras
ISBN: 9788535926552
Ano: 2016
Páginas: 344
*Esse livro foi uma cortesia da Companhia das Letras
Compre: Amazon - Submarino

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1 comentários:

  1. Amiga fiquei surpresa ao encontrar essa sua resenha aqui porque ontem a noite vi o filme baseado nesse livro. Eu nem sabia que existia o livro, escolhi o filme ontem na Netflix pelos atores e pela sinopse, que não revela nada de clones etc, fui surpreendida. Achei tudo muito interessante, critico e de cortar o coração.
    Lendo suas palavras recordei do que senti vendo o filme ontem. Ótimo saber que o autor foi premiado porque essa história é muito interessante e importante para reflexão!!!
    Parabéns pela leitura e ótimo texto!!!

    Leituras, vida e paixões!!!!

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