A HISTÓRIA
Aos dezesseis anos, Grace Marks foi condenada a prisão perpétua, por pouco escapando da forca, por ter participado do assassinato de seu patrão e a governanta da casa em que trabalhava. Seu cúmplice, o faz-tudo da propriedade, antes de ser condenado a morte, a culpou por tudo. Disse que Grace o seduziu, o invetivou a cometer os assassinatos. Os jornais e o público acompanharam o caso de perto. Alguns diziam que Grace é uma mulher fria, calculista e ambiciosa, outros que é uma tola louca, cuja alma foi corrompida. Poucos afirmavam que ela era a verdadeira vítima, uma jovem arrastada contra a sua vontade para uma trama de inveja, paixão, medo e morte.
Há oito anos na cadeia, Grace é uma prisioneira exemplar. Por isso, foi concedido a ela o privilégio de trabalhar na casa do diretor da prisão. Lá, mais do que uma criada, ela é objeto de curiosidade dos amigos da esposa do diretor, uma mulher influente que defende que Grace é inocente, mas que a teme na mesma medida que os demais. Grace já está acostumada com os olhares, com as coisas que falam que ela disse, mas que nunca saíram de sua boca. A mulher prefere passar despercebida, quer deixar o passado para trás. Mas, o passado ainda não está pronto para deixá-la ir, nem o resto do mundo. Grace afirma que não se lembra do que aconteceu, que o dia do assassinato é um borrão na sua mente, buracos na sua memória. Entretanto, o doutor Simon Jordan acredita que essas lembranças perdidas podem ser recuperadas.
“a culpa vem para você não das coisas que você fez, mas das coisas que os outros fizeram com você.” pág. 416
Simon viajou pela Europa estudando a mente humana, em especial a dos loucos e doentes, pois deseja, no futuro, abrir o seu próprio manicômio. Mas, Simon não está certo de que Grace é louca ou doente. Os relatos sobre ela são contraditórios, e ele resolve tirar sua própria opinião, simplesmente pedindo a ela que conte a sua história. Grace sabe que não deve confiar nos outros, especialmente os ricos e os médicos, como o dr. Jordan, mas falar com ele tem efeitos estranhos sobre ela. Logo Grace está narrando o início da sua vida, a morte da mãe, a travessia sombria da Irlanda para o Canadá. Seu pai abusivo, seu primeiro emprego, sua melhor amiga, a rotina de criada - tudo é relatado em mínimos detalhes para o doutor. Detalhes demais até. Simon acredita que Grace está evitando chegar ao dia do assassinato, e Grace se pergunta se o médico está apenas a testando, se sequer acredita nela. Contudo, os momentos entre eles são íntimos e intensos demais para abrir mão deles. E nem Grace nem Simon terminarão essa história do mesmo jeito em que começaram.
“BASEADO EM FATOS REAIS”: O LIVRO, EXPECTATIVAS E A LEITURA
Desde que vi e me apaixonei pela série “The Handmaid’s Tale”, baseado no livro O Conto da Aia de Margaret Atwood, fiquei bastante ansiosa para devorar todas as obras da consagrada autora canadense. E resolvi começar por Vulgo Grace, que também virou uma mini-série, mas a qual eu ainda não tinha visto. Com as expectativas muito altas, peguei Vulgo Grace com curiosidade e animação. Logo de cara fui cativada pelos trechos de poemas e documentos reais da época em que o livro se passa, que servem tanto para nos ambientar ao Canadá do século 19, como nos lembrar de que essa é uma história real.
- Leia a resenha e veja fotos do livro O Conto da Aia
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Grace Marks existiu, foi acusada e condenada por assassinato, passou anos na prisão e alguns em um manicômio, e, por fim, foi libertada quando adulta, ganhou um novo nome e desapareceu dos holofotes e manchetes. Apesar de haver um considerável registro histórico sobre ela, Grace permanece até hoje um mistério. Os relatos sobre ela, desde suas confissões e entrevistas, até poemas que escreveram sobre o seu caso, se contradizem. A mulher foi retratada de muitas formas, desde louca abobalhada até sedutora fatal, mas nunca houve um veredicto que não pudesse ser contestado: até hoje não se encontraram provas de que Grace Marks realmente ajudou a cometer os assassinatos ou se possuía algum distúrbio mental.
E Margaret Atwood se aproveita disso para construir a sua obra. Baseado no que há de real, ela cria uma trama fictícia: a de um jovem doutor investigando a mente de Grace, que narra toda a sua vida em mínimos detalhes. O mais fascinante de Vulgo Grace, preciso dizer, é que é impossível apontar onde começa e onde termina a ficção. A autora foi tão dedicada em sua pesquisa que, de fato, todo o livro parecesse real, incluindo detalhes sobre a vida íntima de Grace que jamais poderíamos saber se realmente aconteceu dessa ou de outra maneira.
“porque esta é uma penitenciária e espera-se que você se arrependa enquanto estiver aqui, e é melhor que você o faça, quer tenha ou não alguma coisa da qual se arrepender.” pág. 37
Apesar de bem construída, a trama, admito, é lenta. A narrativa se alterna entre a primeira e a terceira pessoa. Alguns capítulos são narrados por Grace, e assim conhecemos sua rotina na prisão, sua visão das conversas com o Simon, seus pensamentos, medos, segredos e expectativas para o futuro. Outros capítulos do livro, em terceira pessoa, acompanham o doutor Simon Jordan, a rotina da pensão onde mora, seus anseios e conflitos pessoais, as cartas para a mãe e amigos, etc. Em ambas as perspectivas, Atwood demonstra um estilo narrativo minucioso, a autora não deixa escapar qualquer detalhe do cenário e da aparência dos personagens, assim como os costumes da época. Lugares, objetos, pessoas, gestos, pensamentos e intenções são descritos detalhadamente, o que, por um lado, deixa a história mais rica e vívida, faz com que o leitor se sinta dentro dela. Por outro, a escrita tão detalhista tornou a leitura lenta e cansativa.
OS PERSONAGENS E AS CRÍTICAS DO LIVRO
Atwood também é meticulosa quanto a seus personagens. Há um bom número deles, mas todos bem descritos, de forma que não há como confundi-los. O destaque de Vulgo Grace, claro, fica para os protagonistas: a própria Grace e o doutor Simon. Ambos apresentam personalidades complexas e humanas, além de duvidáveis. Eu amo personagens que apresentam múltiplas facetas, que vão além dos clichês de herói bonzinho e vilão malvado, e Grace e Simon fazem justamente isso.
Por grande parte da história ser narrada por ela, nos sentimos muito próximos a Grace. Seu amor e admiração pela mãe, sua amizade com Mary Whitney e James, seu cuidado em tentar não julgar demais as pessoas são algumas das coisas que nos fazem simpatizar com ela. Mas, logo de cara, percebemos que Grace guarda muito mais do que nos conta (ou conta ao dr. Jordan). Algo interessante é que o livro aborda toda a vida de Grace e, assim, acompanhamos todas as fases e mudanças de sua personalidade. Contudo, desde o início, alguns traços seus são bem infatizados: sua vontade em agradar, sua resignação quanto a seu lugar na sociedade e sua personalidade observadora e influenciável.
Grace vê tudo o que acontece ao seu redor, coisas que até mesmo os outros não notam, mas, na maioria das vezes, as guarda para si mesma. Ela também se silencia diante os abusos que sofre, chegando a imaginar respostas atravessadas e atos maldosos contra aqueles ao seu redor, mas jamais realizando nenhum deles. Grace é obediente, submissa até, e influenciável. Entretanto, seria Grace mesmo tão manipulável ou, na verdade, uma manipuladora? Estaria ela deixando os outros ditarem o seu comportamento, ou mudando suas atitudes conscientemente? Há diversos momentos da narrativa que a protagonista diz que falou ou fez algo para agradar, ou porque achava que era o que esperava-se dela.
E é essa dualidade que a faz uma protagonista tão intrigante e cativante. A autora consegue nos fazer entender porque Grace Marks fascinou e ainda fascina tanta gente, além de nós desafiar a formar nossa própria opinião sobre ela. Particularmente, concebo Grace como uma vítima. Acredito que, vivendo em uma sociedade abusiva em tantas esferas, que a considerava inferior em muitos sentidos (afinal Grace é uma mulher, pobre serviçal e ainda imigrante), aprendeu a usar o sistema a seu favor. O mundo usou Grace a seu bel-prazer, então ela passou a fazer o mesmo. O que, claro, a levou aos limites da sanidade, mas não tão longe a ponto de cruzá-los. Talvez Grace tenha mesmo usado da sedução e calculismo frio para conseguir o que queria, mas, para mim, ela não era louca. Quanto a ser uma assassina ou não, terminei o livro sem respostas, ela poderia ter participado da mesma maneira em que não. Mas, como vou tratar mais embaixo, esse não é, acredito, o objetivo de Vulgo Grace, e a culpabilidade de Grace, assim, se torna aquele tipo de mistério histórico e literário que, como a traição de Capitu, por exemplo, jamais será verdadeiramente resolvido, não importa o quanto se debata sobre.
Grace vê tudo o que acontece ao seu redor, coisas que até mesmo os outros não notam, mas, na maioria das vezes, as guarda para si mesma. Ela também se silencia diante os abusos que sofre, chegando a imaginar respostas atravessadas e atos maldosos contra aqueles ao seu redor, mas jamais realizando nenhum deles. Grace é obediente, submissa até, e influenciável. Entretanto, seria Grace mesmo tão manipulável ou, na verdade, uma manipuladora? Estaria ela deixando os outros ditarem o seu comportamento, ou mudando suas atitudes conscientemente? Há diversos momentos da narrativa que a protagonista diz que falou ou fez algo para agradar, ou porque achava que era o que esperava-se dela.
E é essa dualidade que a faz uma protagonista tão intrigante e cativante. A autora consegue nos fazer entender porque Grace Marks fascinou e ainda fascina tanta gente, além de nós desafiar a formar nossa própria opinião sobre ela. Particularmente, concebo Grace como uma vítima. Acredito que, vivendo em uma sociedade abusiva em tantas esferas, que a considerava inferior em muitos sentidos (afinal Grace é uma mulher, pobre serviçal e ainda imigrante), aprendeu a usar o sistema a seu favor. O mundo usou Grace a seu bel-prazer, então ela passou a fazer o mesmo. O que, claro, a levou aos limites da sanidade, mas não tão longe a ponto de cruzá-los. Talvez Grace tenha mesmo usado da sedução e calculismo frio para conseguir o que queria, mas, para mim, ela não era louca. Quanto a ser uma assassina ou não, terminei o livro sem respostas, ela poderia ter participado da mesma maneira em que não. Mas, como vou tratar mais embaixo, esse não é, acredito, o objetivo de Vulgo Grace, e a culpabilidade de Grace, assim, se torna aquele tipo de mistério histórico e literário que, como a traição de Capitu, por exemplo, jamais será verdadeiramente resolvido, não importa o quanto se debata sobre.
Contudo, enquanto a minha balança sobre Grace se alterna de um lado para o outro constantemente, pendendo um pouco mais para uma personagem da qual gosto, com o Simon acontece o contrário. É difícil ter uma decisão final sobre ele também, mas é mais fácil vê-lo como vilão do que herói, como detestável do que qualquer outra coisa. Não se enganem, há momentos em que Simon cativa, quando, por exemplo, se demonstra cético a práticas não científicas e crítica a facilidade com que a sociedade tem em taxar qualquer pessoa de louca e fora do normal, além do interesse e fascinação fúteis dos ricos sobre os doentes mentais. Apesar de ter um objetivo com as entrevistas, Simon parece, em grande parte do tempo, realmente ouvir Grace e tenta ver o ser humano de verdade por trás de tantos boatos.
Entretanto, como disse, Simon tem um objetivo e não se esquece dele em nenhum momento. Conforme vai sendo envolvido pela narrativa de Grace, o médico parece se esquecer que ela não está ali para o entreter ou agradar, o que acaba revelando sua verdadeira visão das mulheres. Conforme vamos também tomando conhecimento de sua vida na pensão, com uma mulher carente que sofre com o marido alcoólatra; quando lemos as cartas de sua mãe e vemos o desprezo de Simon pela vontade dela de juntar o filho a uma jovem local; percebemos que Simon é, por fim, um homem de seu tempo. Americano, rico e branco, ele vê as mulheres como seres humanos iguais aos homens (ele até comenta sobre as aulas de anatomia e como por dentro somos iguais), mas que estão ali para servir. Para Simon, existem mulheres para se casar, mulheres para servir sua comida e limpar seu quarto, para satisfazer seu apetite sexual e até mesmo seus interesses científicos. Simon é gentil com as mulheres por acredita que esse é seu papel, enquanto o delas é ser objeto de suas vontades e desejos. E por isso, como mulher e feminista, muitas vezes me irritei com os pensamentos e ações do personagem.
Contudo, assim como Grace, Simon noz faz questionar: estamos presos ao nosso tempo, a nossa criação? Até que ponto nossa personalidade é moldada pela sociedade e a cultura? Teria sido Grace acusada de ser sedutora e imoral se fosse a patroa e não a criada? Já Simon seria tão envolvido por Grace e sua história se ela fosse homem ou se ele fosse mulher? Ou mesmo teria o doutor tão claramente argumentado que Grace não era louca ou teria tanto interesse na mente humana se não fosse um homem rico e, logo, possibilitado de tempo e dinheiro para estudar o assunto? Vulgo Grace não oferece nenhuma resposta, mas boas reflexões nesse sentido.
CONCLUSÕES FINAIS – VALE A PENA LER VULGO GRACE?
Em primeiro plano, Vulgo Grace reacende o interesse em uma das personalidades femininas mais enigmáticas da história do crime e do Canadá. O livro nos desafia a entrar na mente de Grace Marks e tentar a entender uma mulher que, ainda adolescente, foi perseguida, acusada e presa por ter, supostamente, participado de um duplo, sangrento e calculista assassinato. Amplamente amparado por documentos reais sobre o caso, a ficção ocupa parte pequena da história e entra com o protagonista masculino do livro, um jovem médico que quer entender a mente de Grace através da sua narrativa sobre a sua história.
Entretanto, em segundo plano, Vulgo Grace é mais que um romance histórico intrigante. A obra é uma crítica a sociedade patriarcal e machista do século 19, cuja visão concebida sobre as mulheres infelizmente, perpétua até hoje. Vulgo Grace aponta as injustiças e desigualdades sociais daquela época, e o modo cruel com o que certa parcela população era tratada. Loucos e mulheres, ainda mais mulheres loucas, eram objetos de fascínio, medo e admiração, mas não mais que objetos. E na obsessão dos outros personagens por Grace e sobre o que ela realmente era (louca, tola, frígida, sedutora, ambiciosa, subversiva, manipulável, manipuladora, assassina ou vítima?), a autora ainda destaca a desumanização das mulheres, transformadas em entretenimento, em sujeito científico, em símbolo de justiça ou de injustiça, de imoralidade ou de exemplo a ser seguido, em tudo menos o que é: um ser humano com ideias, opiniões, desejos e vontades próprias.
Vulgo Grace é, portanto, uma obra crítica, ainda bastante atual, que merece ser lida. A trama é extensa e carregada de detalhes minuciosos que, ao mesmo tempo em ambienta bem a história, nos fazendo sentir dentro dela, torna a leitura cansativa. Mas mesmo não conseguindo ler mais que um ou dois capítulos por dia, Vulgo Grace foi uma viagem fascinante ao Canadá do século 19 e a mente de Grace Marks. Com uma tensão e mistérios do início ao fim, assim como protagonistas humanos, complexos e instigantes, a obra é fascinante e viciante. Mesmo agora, dias após a leitura, não consigo parar de pensar em Vulgo Grace, coisa que vou tentar compensar vendo a mini-série baseada no livro. Eu amei a obra, que me deixou bastante curiosa e ansiosa para devorar mais obras da Margaret Atwood. Quem curte romances históricos e tramas sobre assassinatos, loucura e mulheres enigmáticas, definitivamente precisa ler Vulgo Grace o mais rápido possível.
“Se todos nós fôssemos julgados por nossos pensamentos, seríamos todos enforcados.” pág. 351
A EDIÇÃO
Vulgo Grace tem uma boa edição. A diagramação simples permite que o leitor foque na complexa história, mas traz detalhes bem-vindos, como a ilustração de Grace Marks real. A tradução está excelente, e o texto sem qualquer erro ou inconsistência. O livro tem uma fonte em bom tamanho e páginas de um material resistente cor de creme, que ajudam a deixar a leitura menos cansativa. Eu adoro a capa de Vulgo Grace, que é sombria e intrigante como a obra. A silhueta do rosto feminino preenchido pela ilustração de uma jovem ruiva com trajes da época combinam perfeitamente com a descrição de Grace e das roupas que ela usava na prisão, assim como a proposta do livro, de mostrar a mulher por trás de tantas histórias, relatos e boatos contraditórios sobre ela.
QUOTES FAVORITOS
“De qualquer maneira, não reconheceriam a loucura se a vissem, porque uma boa parte das mulheres no manicômio não era mais louca do que a rainha da Inglaterra. […] Uma delas estava lá para fugir do marido, que a espancava até deixá-la toda roxa e contundida, ele é que ela o louco, mas ninguém o prenderia no hospício.” pág. 42
“é preciso ter cuidado em dizer o que se deseja ou mesmo desejar alguma coisa, já que se pode ser punida por isso. Foi o que aconteceu com Mary Whitney.” pág. 115
“Não era possível agir de duas maneiras, ele assinalava: se as mulheres são seduzidas e abandonadas, espera-se que fiquem loucas, mas, se sobrevivem, e seduzem por sua vez, então são consideradas loucas desde o começo.” pág. 332
“À beira do sono, eu pensei: É como se eu nunca tivesse existido, porque não sobrou nenhum traço meu, não deixei nenhuma marca. E assim não posso ser seguida. É quase o mesmo que ser inocente.” pág. 377
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