14.1.18

Resenha: O Conto da Aia - Margaret Atwood


A HISTÓRIA

Nem sempre foi assim. Antes, ela tinha um nome, um emprego, uma casa, uma família, uma voz. Agora: ela é apenas Offred e sua única função é se reproduzir. Nas noites solitárias em seu pequeno quarto, Offred se lembra de antes. Se lembra dos tempos de faculdade, com a melhor amiga Moira. Se lembra das noites de paixão com Luke, seu marido. Se lembra de carregar a filha em seu ventre, de vê-la começar a crescer. Mas isso foi antes, antes dos Estados Unidos se tornarem a República de Gilead, um estado teocrático e totalitário, baseado no antigo testamento.

Offred também se lembra dos dias no Centro Vermelho. De ser separada da família e obrigada a aprender como ser uma Aia. Com suas roupas e véu vermelhas, e chapéus que cobrem seus rostos, as Aias são mulheres ainda férteis, a esperança de um país com baixíssimo índice de fertilidade. A missão de Offred é, portanto, trazer uma criança para esse mundo, se não será deportada para as Colônias, onde precisará trabalhar limpando lixo tóxico. Na sua nova casa, Offred é vista como um sinal de esperança por Cora, uma das Marthas, mulheres mais velhas responsáveis pelo trabalho doméstico. do lugar. Contudo, a verdadeira dona da casa, a Esposa do Comandante, prefere fingir que Offred não existe, isso quando não demonstra seu completo desprezo pela Aia.


Detentoras do maior prestígio social entre as mulheres, as Esposas são as mulheres dos homens importantes, mas, como as outras, confinadas ao ambiente doméstico. O contato limitado com Comandante não permite que Offred forme rapidamente uma opinião sobre ele. Um homem mais velho e sempre ocupado, o Comandante não parece tirar qualquer prazer de usar Offred para fins de procriação. Ele não parece contra, por outro lado. Assim, a vida de Offred agora se resume a observar tudo e todos a seu redor. O tempo se arrasta, o máximo de distração que tem é fazer compras domésticas com Ofglen, uma Aia enigmática e quieta. 

Mas, tudo começa a mudar quando Offred é avisada por Nick, um dos Guardiões (homens que fazem os trabalhos menos importantes para os Comandantes e a República) da casa, a avisa que o Comandante quer vê-la em segredo. Se encontrar com um homem assim é contra a lei e poderia fazer Offred ser presa e até mesmo executada, ainda mais tendo Nick como testemunha. Mas, não há como ela negar o pedido de um Comandante e, afinal, a única decisão que resta a Offred é se usará esses encontros a seu favor ou não.


A LEITURA E AS CRÍTICAS DO LIVRO

Eu estava bastante curiosa para ler O Conto da Aia desde que me apaixonei pela série baseada no livro, "The Handmaid’s Tale". Além de tudo, a pouco tempo li Vulgo Grace, também da Margaret Atwood, e fui bastante cativada pela autora. Logo, eu estava com altas expectativas para O Conto da Aia e a obra não me decepcionou. Diferente de Vulgo Grace, não demorei a ler esse livro, apesar de ter achado a primeira metade um pouco arrastada.

- Leia a resenha completa e veja fotos de Vulgo Grace

Em O Conto da Aia, Atwood apresenta uma narrativa um pouco mais lírica do que em Vulgo Grace, com muito simbolismos, metáforas e comparações quase poéticas. A história não se desenvolve de forma linear. Através de flashbacks constantes, o passado e o presente da protagonista se misturam, conforma ela compara o Antes e o Depois do governo totalitário e teocrático. Além disso, em vez de descrições extensas de lugares, objetos e pessoas, nesse livro, a autora se dedica a narrar com detalhes os estados mentais da protagonista, o que ela está sentindo e como percebe os comportamentos alheios. Entrar tanto na cabeça de Offred, a narradora, é, por um lado, muito bom, nos permitindo sentir a tensão e o medo em sua vida como Aia, além do tédio, a sede por libertação e, muitas vezes, por um simples toque humano. Mas, em contrapartida, a narrativa se torna arrastada e lenta em alguns pontos, nos fazendo sentir que a história não avança e, principalmente nos momentos em que Offred cogita o suicídio, a leitura chega a causar certo mal-estar.

Mas, esse mal-estar, acredito, não é só bem-vindo, como necessário. Diferente do que eu esperava, e diferente do tom que a série de televisão baseada no livro ganhou, O Conto da Aia não é uma narrativa sobre resistir e lutar contra a opressão. A obra é sobre a opressão em si, sobre como um governo totalitário e fundamentalista massacrou uma pessoa a ponto de lhe tirar até mesmo a coragem por lutar pela própria liberdade. A trama de O Conto da Aia não é cheia de reviravoltas e cenas de ação quanto o seriado, mas a tensão do livro se mantém do início ao fim, pois Offred está sobre tensão constante. Ela não consegue respirar ou dormir sem cogitar que, a qualquer momento, pode ser punida por fugir das regras ou simplesmente porque alguém deseja e pode puni-la. Offred também sofre um conflito mental intenso graças as divergências entre suas antigas ideias sobre sexo, amor, família e dever, e os ideais fundamentalistas que ela é obrigada a seguir.


Mais especificamente sobre opressão feminina, O Conto da Aia mostra como é fácil, para a cultura machista do ocidente cristão, classificar e dividir mulheres como se fossem coisas em vez de pessoas. No futuro não tão distante da obra, há as mulheres para cozinhar e cuidar da casa (as Marthas), há mulheres para casar (as Esposas), para o prazer sexual (as da casa de Jezebel), para reproduzir (as Aias, claro) e, o mais chocante, mulheres para controlar as outras (no caso, as chamadas Tias). O sistema é cruel e desarticula qualquer fagulha de união entre elas, isolando-as e colocando-as uma contra as outras. As mulheres defendem e competem com unhas e dentes pelas migalhas de privilégios que têm, mesmo que todas vivam sobre a mesma opressão e silenciamento. 

“Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços em branco não preenchidos nas margens da matéria impressa. (...) Vivíamos nas lacunas entre as matérias.” pág. 71

O Conto da Aia também fala bastante sobre poder e liberdade, tanto políticas/sociais, quanto pessoais. O livro nos faz questionar se é o lugar do governo ditar como as pessoas devem viver e puni-las quando fogem das regras, assim como o fundamentalismo religioso é volátil e nocivo. O Conto da Aia retrata bem como, muitas vezes, a fé das pessoas é usada por indivíduos para forçar outros, através da “vontade de Deus”, a atingir objetivos (como o controle populacional e econômico) sendo que eles nada tem a ver com religião. Sobre liberdade, Offred mesmo, em vários momentos, reflete sobre como não percebia, na vida de antes, como era livre. Mas, após ter seu direito de escolha retirado, ela nota que coisas cotidianas, como escolher que roupa vai vestir, o que vai comer e com quem você vai transar, são mais valiosas que ouro.

O poder da escolha é, talvez, a maior riqueza da vida humana e não o ter é devastador. É agoniante, por exemplo, trechos em que Offred narra sua vontade de simplesmente ser tocada ou de conversar com qualquer pessoa, coisa banal que, agora que não pode fazer, é um desejo capaz de consumir todo o seu ser. Mas, o livro ainda questiona: em que ponto uma escolha se torna uma não escolha? Quando você se força a não resistir a opressão, está fazendo uma escolha? Quando escolhe se anular e aceitar para sobreviver, você está fazendo uma escolha? O Conto da Aia, como todas as boas distopias, não nos oferece qualquer resposta (ainda mais com o final aberto e inquietante que a história tem), mas nos faz continuar pensando nesses temas mesmo depois de terminada a leitura.


OS PERSONAGENS

Para uma distopia, O Conto da Aia tem um número até reduzido de personagens. A mais bem desenvolvida deles, é claro, é a protagonista. Com uma personalidade observadora, Offred é bastante atenta ao mundo a seu redor e tende ao ceticismo e ao pessimismo. Ela é inteligente e crítica, e, pelo menos no mundo de antes, tinha sonhos, desejos e problemas como qualquer pessoa. Mas, no mundo de agora, vê como única opção para sobreviver se anular, escolher não resistir, diante um mundo cruel.

É preciso lembrar de Offred, antes de perder seu nome de verdade, seu emprego, sua família e todas as suas outras liberdades, em especial a reprodutiva, tentou lutar. A mulher tentou escapar, mas não mente e assume que, no início de tudo, permitiu que as coisas acontecessem. Há momentos até que nos irritamos com a submissão de Offred: por que ela se cala? Por que não tenta escapar? E, assim, a autora do livro nos faz encarar uma dura verdade: faríamos o mesmo no lugar dela. Em sua narrativa brutalmente honesta e autocrítica, a personagem assume que esteve inerte no começo de tudo, que acreditava que reviravoltas políticas estavam fora do seu controle – e quantos de nós não pensamos a mesma coisa? E até onde, como Offred, especialmente sendo mulheres também, nós nos deixamos subjugar para simplesmente conseguir sobreviver?

“Mas é nele que estou, não há como escapar disso. O tempo é uma armadilha e estou presa nele. Tenho que esquecer meu nome secreto e todos os caminhos de volta. Meu nome agora é Offred, e aqui é onde vivo.” pág. 173

Os outros personagens de O Conto da Aia, por serem retratados pela visão de Offred, nos são apresentados de forma limitada, presos a perspectiva que a personagem tem deles. Alguns, como Nick e Ofglen, terminam a obra ainda um mistério, já que a própria Offred não consegue os decifrar por completo ao longo da história. Além de Offred, minha favorita é sua melhor amiga, Moira. Ao contrário da protagonista, Moira resiste do início ao fim. Ela tenta se rebelar e fugir mesmo quando tudo dá errado. Se por um lado, nos identificamos com Offred porque, como ela, também acabaríamos aceitando a opressão, Moira é quem queríamos ser, com sua coragem para lutar pelo que acredita em vez de apenas sobreviver. 


A EDIÇÃO

O Conto da Aia tem uma boa edição. A tradução está excelente, e conta até com algumas notas de rodapé do tradutor, que nos ajudam a compreender algumas referências que se perderam na passagem da história do inglês para o português. A diagramação é simples, e as páginas cor de creme sem qualquer detalhe. Achei o tipo da fonte bom, mas o tamanho um pouco pequeno, mas que não chega a ser um incômodo de verdade. Eu adoro a capa de O Conto da Aia. Ela combina com a de Vulgo Grace, outra obra da autora lançada recentemente, e com a história. A mulher de vestido vermelho e chapéu branco, com um muro às suas costas, são elementos presentes e importantes na trama, além de gerarem uma imagem visualmente bonita e impactante (especialmente graças aos elementos bíblicos que acompanham, como a cruz pegando fogo e a cobra).


CONCLUSÕES FINAIS

Impactante e tenso do início ao fim, O Conto da Aia é uma distopia assustadoramente próxima da realidade sobre um estado totalitário e fundamentalista, cujo controle populacional extremo leva as mulheres a perderem todos os seus direitos e serem obrigadas a assumir novos papéis dentro do ambiente doméstico. Além de tudo, esse é um livro sobre opressão, poder, escolha, sobrevivência e liberdade, especialmente das mulheres, obrigadas a se vestirem, se casarem e até se reproduzirem como ditam os homens, que se baseiam em textos religiosos obscuros. 

O Conto da Aia também nos faz refletir sobre como nos comportaríamos em situação semelhante, nos fazendo encarar verdades duras sobre a facilidade com que nos tornamos inertes e submissos quando nossa vida é ameaçada. A narrativa em primeira pessoa, com muitas metáforas e simbolismos quase líricos, deixam a leitura arrastada. A falta de reviravoltas, grandes surpresas ou cenas de ação na trama podem decepcionar alguns. Contanto, eu adorei o livro. É impossível não se cativar pela situação da protagonista, sentir todas as dores e medos que ela está sentindo, e refletir sobre as temáticas abordadas na obra. O Conto da Aia não é uma leitura fácil ou leve, mas é necessária e gostosa até, assim como enriquecedora. Em um mundo como o nosso, onde o fundamentalismo e o discurso de ódio se espalham de forma viral pela internet, todos, sem exceção, deveriam ler O Conto da Aia.

QUOTES FAVORITOS

Não é de fugas que eles têm medo. Não iríamos muito longe. São daquelas outras fugas, aquelas que você pode abrir em si mesma, se tiver um instrumento cortante.” pág. 16

A juventude deles é comovente, mas sei que não posso me deixar enganar por ela. Os jovens são com frequência os mais perigosos, os mais fanáticos, os mais nervosos com suas armas. Ainda não aprenderam com o tempo sobre as coisas da vida. Você tem que ir bem devagar com eles.” pág. 31

Eu me ajoelhei para examinar o piso do armário e lá estava, escrito em letras minúsculas, bem recentes, parecia, riscadas com um alfinete ou talvez apenas uma unha, no canto, onde caía a sombra mais escura: Nolite te bastardes carborundorum.” pág. 65

Mas isso está errado, ninguém morre por falta de sexo. É por falta de amor que morrermos. Não há ninguém que eu possa amar, todas as pessoas que eu podia amar estão mortas ou em outro lugar. Quem sabe onde estão ou quais são seus nomes agora? Poderiam muito bem não estar em lugar nenhum, como eu estou para elas. Também sou uma pessoa desaparecida.” pág. 125

Melhor?, digo, em voz baixa, apagada, Como ele pode pensar que isto é melhor?
Melhor nunca significa melhor para todo mundo, diz ele. Sempre significa pior, para alguns.” pág. 251

Título: O Conto da Aia
Título original: The Handmaid's Tale
Autora: Margaret Atwood
Editora: Rocco
ISBN: 9788532520661
Ano: 2017
Páginas: 368
*Esse livro foi uma cortesia da Editora Rocco
Compre: Amazon - Submarino

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3 comentários:

  1. Olá Ana!
    Estou ansiosa para assistir a série e ler o livro.
    Acho que a história é bem tensa mesmo, mas enriquecedora e cheia de reflexões.
    Amei suas impressões, só me deu mais vontade de conhecer a história!
    Beijos!

    Books & Impressions

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  2. Amiga que resenha fora de sério, amei ... Com certeza quero ver a série e ler o livro. Ainda não decidi a ordem que farei. Vou acompanhar os preços desse livro e assim que estiver em oferta irei investir, pode deixar. Suas impressões me deixaram ansiosa para conhecer essa Distopia dramática e como vc mesma citou, infelizmente tão próxima da realidade.
    Parabéns pela leitura e pela resenha mega detalhada. Beijos e ótima semana querida!!!

    Leituras, vida e paixões!!!

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  3. Olá, Ana!

    Esse livro parece ser daqueles muito inquietantes e vão nos fazer pensar bastante.

    Beijos,

    Ana.

    www.umlivroenadamais.com

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