6.1.18

Resenha: Ninguém Nasce Herói - Eric Novello


A HISTÓRIA

Todo mundo sabe exatamente como aconteceu, acompanharam pela televisão e até brincaram sobre nas redes sociais. Ninguém levava o político que se intitula “O Escolhido” a sério. Achavam que era só mais um fanático religioso fazendo barulho por nada, e que logo seria esquecido. Mas, o Escolhido trilhou seu caminho até a presidência e agora tem o Congresso e o país em suas mãos. O que permitiu que as minorias fossem perseguidas não só pelo próprio governo e a violenta polícia, mas também pela Guarda Branca, fiéis que fazem justiça com as próprias mãos, massacrando todos que não seguem a “moral e bons costumes” cristãos.

Chuvisco, como muitos outros, se sente culpado por ter deixado O Escolhido chegar ao poder. Um tradutor recém-formado e pacifista, ele manifesta sua insatisfação distribuindo livros, que foram banidos e passaram a ser temidos no novo Estado teocrático. Teoricamente, Chuvisco não está quebrando lei alguma: o governo acaba de anunciar a assinatura do Pacto de Conveniência, proibindo a perseguição a minorias e reinstalando o direito à liberdade de expressão. Mas, nem sempre o que está na lei é o que reina nas ruas. Chuvisco vê de perto a violência ainda acontecendo, com seus amigos artistas, negros, homossexuais e de outras religiões sendo perseguidos, ameaçados e apanhando em plena luz do dia. 


E não há quem recorrer. A polícia e o governo não querem ajudar ninguém, e a Guarda Branca parece cada vez maior e mais sangrenta. E as únicas pessoas que têm coragem de combatê-los são os membros misteriosos da Santa Muerte que, usando máscaras de caveiras mexicanas, registram e divulgam na internet cenas de violência e opressão do Estado. Mas, há boatos de que os membros da Santa Muerte estão lutando de forma menos pacífica contra O Escolhido, agindo nas sombras e combatendo sangue com sangue. 

Chuvisco odeia O Escolhido, odeia o que o país se tornou, mas não sabe bem o que fazer. O medo e a ansiedade constante despertam novamente o que ele chama de catarses criativas, momentos de crise e terror em que sua imaginação toma conta e ele vai perdendo a noção do que é real. Chuvisco tenta entrar em contato com seu antigo terapeuta, mas o doutor parece ter desaparecido – será mais um a sucumbir por causa do Escolhido? Entretanto, tudo muda quando Chuvisco salva um garoto chamado Júnior de um grupo violento da Guarda Branca. Chuvisco ficou bastante ferido com o conflito, mas Júnior ficou em estado pior ainda e o tradutor não sabe onde ele foi parar. Assim, Chuvisco começa a buscá-lo, entrando em um submundo de conversas secretas e resistência, que faz o seu caminho cruzar com o da Santa Muerte, que parece querer recrutá-lo. Mas será que Chuvisco está preparado para resistir e lutar? Ou suas crises cada vez mais fortes irão incapacitá-lo antes que tome uma decisão?


A LEITURA: TRAMA, NARRATIVAS E CRÍTICAS DA OBRA

Eu estava curiosa para ler Ninguém Nasce Herói. Já tinha visto o nome do Eric Novello por aí, mas nunca tinha tido oportunidade de ler algo do autor. E quando recebi Ninguém Nasce Herói, o título logo me chamou atenção, assim como a sinopse, que já deixava claro que a trama não se distancia tanto assim do Brasil de hoje, mesmo se passando em um futuro próximo. Figuras extremistas e religiosos fanáticos são comuns no cenário político brasileiro. Nada mais que disseminadores de ódio na maioria do tempo inofensivos, mas que volta e meia conseguem passar algum projeto de lei polêmica que visa apenas reduzir o direito das minorias e aumentar a desigualdade do nosso país. E é justamente o que O Escolhido faz no Brasil fictício de Ninguém Nasce Herói, só que no papel de presidente – o que de cara é um alerta para o leitor que figuras assim precisam ser levadas a sério e com cuidado, pois são persistentes em sua missão de prejudicar o próximo.

“Não é fácil ser um pacifista em tempos de repressão. Fazer a diferença sem pegar em armas. Manter o senso sem deixar que o medo que o medo cale nossa voz.” Pág. 7/8

Apesar de se apresentar como uma distopia, Ninguém Nasce Herói segue uma trajetória diferente dos livros do gênero – o que por um lado foi bom e surpreendente, mas por outro ruim, como vou explicar mais adiante. O nosso protagonista e narrador começa como um pacifista, mas ao longo da trama percebe que distribuir livros é importante, mas não o suficiente para derrubar gente como O Escolhido e se envolve em formas mais ativas de resistência. Contudo, não espere que o Chuvisco vire a Katniss brasileira e decida matar o presidente ele mesmo, que era mais ou menos o que eu esperava… Mesmo mudando de tática, o protagonista encontra formas alternativas de lutar contra o governo opressor, o que foi interessante - eu mesma não acredito que, na vida real, devemos combater violência com violência, ódio com ódio -, mas que tornou a trama menos emocionante do que eu esperava.

De fato, Ninguém Nasce Herói me decepcionou um pouco nesse quesito. Talvez porque eu esperava planos secretos e mirabolantes, além de emocionantes, para derrubar o presidente fanático, achei o livro parado demais para uma distopia. A obra tem sim alguns momentos de ação, conflito e muita tensão, mas, por não serem o foco da história, não supriram a minha expectativa por grandes movimentações e conspirações políticas. No fim, a trama de Ninguém Nasce Herói se revelou ser não sobre um garoto rebelde lutando contra o sistema, mas o que é ser uma pessoa com as próprias ideias em um país oprimido e governado pelo fanatismo religioso.


A narrativa em primeira pessoa de Ninguém Nasce Herói é bastante intimista e reflexiva, além de bonita e fluída. Eric Novello leva o leitor não só para a vida de Chuvisco, que é um constante estado de resistência contra um governo opressor, mas a seus pensamentos e, mais importantes, o modo como lida com as “catarses criativas”, suas crises mentais em que a realidade fica meio borrada. Nesse ponto, senti que faltou um melhor desenvolvimento: os momentos de catarses criativas são confusos, como imagino que deveriam ser, afinal o Chuvisco estava perdendo a noção da realidade, mas que deixam o leitor meio perdido e, logo, a leitura arrastada. Também me frustrei por não encontrar uma resposta clara sobre o que exatamente o protagonista tem ou do que sofre. Como estudante de psicologia, eu gostaria de ter lido mais detalhes técnicos sobre o que estava afetando a saúde mental de Chuvisco.

O modo como o autor entrelaça o problema de Chuvisco com suas catarses criativas e sua insatisfação com o governo é interessante e, para mim, constituem o ponto principal de Ninguém Nasce Herói. Conforme o país é tomado por mais violência e intolerância, pior Chuvisco fica - a realidade fica cada vez mais bagunçada e sua mente foge para lugares distantes e irreais. Nisso, Ninguém Nasce Herói faz um trabalho verdadeiramente de utilidade pública: a obra mostra como o ambiente, desde o âmbito doméstico, profissional, social até o político, é importante para a saúde mental das pessoas. Em um mundo violento, em que você teme abrir a boca ou expressar uma opinião, que sair na rua coloca sua vida em risco, é praticamente impossível se manter equilibrado, evitar que o medo e a ansiedade tomem conta e te deixem doente. E, ao mesmo tempo em que advoga sobre a importância da saúde mental, Ninguém Nasce Herói também fala sobre a necessidade de se combater a intolerância e o ódio para o bem mental da população. O livro ainda questiona a passividade política do povo brasileiro e nos faz refletir sobre os modos de resistir a opressão e se vale a pena combater o mal fazendo o mal.
A EDIÇÃO

Ninguém Nasce Herói tem uma diagramação sem grandes detalhes, mas um texto sem erros e com letras em bom tamanho. As páginas amareladas ajudam a deixar a leitura mais confortável. O livro ainda conta com uma capa linda, cheia de elementos e detalhes escondidos que remetem a história: como uma caveira mexicana e um dinossauro. Eu gosto bastante também das cores escuras e da fonte do título, com sombra inclinada, que combinam com o lado mais sombrio e denso da história.


CONCLUSÕES FINAIS

Ninguém Nasce Herói não é um livro fácil de ler. Eu demorei quase duas semanas para terminar a obra porque alguns momentos de ansiedade e medo pelo qual o personagem passa são tão bem descritos que não me fizeram sentir tão bem (por isso atento que a obra pode acabar sendo gatilho por falar tanto de opressão e violência). Apesar de ter frustrado as minhas expectativas por não ser uma distopia com muitas cenas de ação, a obra tem lá seus momentos de tensão e reviravolta que fazem nosso coração bater um pouco mais forte. 

Ninguém Nasce Herói é uma história crítica e intensa sobre fanatismo religioso, ódio, violência e opressão, mas também sobre luta e amizade. Nos forçando a refletir sobre como um ambiente político que persegue minorias e dissemina a desigualdade social pode fragilizar a saúde mental da população, a obra também questiona sobre as diversas formas de resistir e combater um sistema assim. Com personagens cativantes (e bastante representativos, já que são de sexualidade e etnias diversas) e uma narrativa intimista e quase poética, Ninguém Nasce Herói pode não ser uma leitura fácil, mas é necessária. 

Apesar de a leitura ter sido arrastada em vários momentos, ela provocou tantas reflexões interessantes e assustadoras relações com a realidade (principalmente quanto a certos políticos fanáticos e disseminadores de ódio presentes em nosso governo), que fiquei contente de ter lido o livro, mesmo ele tendo me causado certo mal estar em determinados pontos. Ninguém Nasce Herói está mais que recomendado para todos, mas peço cautela para o livro não virar gatilho. Agora estou bastante curiosa para ler mais obras do Eric Novello.

QUOTES FAVORITOS

“Bastaria alguém e força de vontade. Bastaria dizer que chega. O problema é que o ‘basta’ abre as portas para o desconhecido. E, hoje, o desconhecido causa medo.” pág. 9

“Para os fundamentalistas, o outro era sempre o inimigo. E o inimigo merecia a morte.” pág. 43

“Enquanto a maioria das pessoas usa a fantasia como uma folga dos problemas da realidade, eu fazia o contrário: criava um mundo tenebroso para que a realidade não fosse tão assustadora assim.” pág. 107

“Numa sociedade sã, a loucura é a única liberdade.” pág. 115

“Santa Muerte vive e está com vocês.” pág. 128

Título: Ninguém Nasce Herói
Autor: Eric Novello
Editora: Seguinte
ISBN: 9788555340420
Ano: 2017
Páginas: 384
*Esse livro foi uma cortesia da Editora Seguinte
Compre: Amazon - Submarino

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