23.3.16

Desafio de Escrita: As vantagens de ser invisível


Quando o barulho insistente e agudo invade os meus doces sonhos, eu tenho a certeza de que a pessoa que inventou o despertador agora descansa eternamente no inferno. Enquanto argumento na minha cabeça de que deveriam existir leis que proibissem as pessoas de acordarem cedo, em benefício da sua saúde e sanidade mental, me arrasto para fora da cama como um condenado faria no dia de sua execução. 

No andar cambaleante de quem acabou de acordar e ainda queria estar na cama, vou até o banheiro e lavo meu rosto na pia. Contudo, não é a água fria que me desperta. Quando olho no espelho sobre a pia, ainda sentindo a água escorrer pelo meu rosto, me pergunto se ainda estou sonhando. Esfrego meus olhos com força, dizendo que o cansaço finalmente está me domando e fazendo ver coisas. Contudo, quando abro os olhos novamente, não vejo nada. E é isso que me aterroriza, que faz todos os pelos do meu corpo se arrepiarem.

Estou parando diante o espelho, encarando-o. Lá está, a moldura já desgastada, o vidro que precisa de um pouco de limpeza e que está rachado em uma das bordas há anos, tanto tempo que nem mais me lembro o que causou a fratura. Nada mudou, pelo menos não quanto ao espelho. Ele está como sempre esteve. Então deve haver algo de errado comigo. Porque não consigo ver o meu reflexo. O vidro reflete parte do banheiro e parte do quarto atrás me mim, visível pela porta aberta, mas não mostra nenhum fio de cabelo meu, ou a minha cara de espanto.

Eu deixo o banheiro e vou até o quarto. Hesito por alguns segundos, olhando para os meus pés e não para o espelho que cobre uma das portas do guarda-roupa. O pânico começa a se formar no meu peito e olho para o espelho antes que comece a tecer teorias malucas, esperando ver o meu reflexo e suspirar aliviado. Mas fui amaldiçoado, aparentemente, pois o alívio não virá para mim tão cedo. Também não há qualquer sinal da minha pessoa no espelho do guarda-roupa.


Tento o espelho da sala e o resultado é o mesmo. Portas e janelas de vidro, panelas de metal reluzente. Nada. Não há superfície capaz de refletir o meu corpo e começo a acreditar que ainda estou sonhando. Mas a possibilidade de tudo aquilo não ser nada mais que uma fantasia maluca do meu cérebro enquanto durmo não me acalma. Tento ver-me através da câmera do celular. Capturar minha imagem pela máquina fotográfica. Mas todos os esforços são em vão. Depois de várias e várias fotos de mim mesmo em que simplesmente não apareço, começo a rir quando lembro todas as vezes em que critiquei a nova geração por sua mania de selfies, sendo que uma para mim, agora, seria a prova de que não estou maluco e que definitivamente não estou invisível. 

Me jogo de volta na cama, em desespero. Olho minhas mãos, pressiono-as contra o meu corpo. Eu me vejo, eu me sinto. Eu sei que existo, que sou real, que meu corpo é feito de carne sólida como qualquer outro. Mas por que, então, não consigo ver o meu reflexo? Todos os filmes e livros bizarros que já li amontoam-se na minha mente enquanto tento buscar uma resposta sobrenatural, porque uma explicação lógica definitivamente está fora do meu alcance. Lembro-me de Drácula, que também não exibia reflexo no espelho, mas estar me transformando em um vampiro parece ridículo demais, até mesmo em uma situação tão bizarra como essa.

Meu celular começa a tocar estrondosamente, me despertando dos meus devaneios de loucura. Vejo que é um colega de trabalho que me liga e percebo o quanto estou atrasado. Visto minha roupa da forma mais veloz que posso, me esquecendo momentaneamente de toda a coisa envolvendo o espelho. Contudo, quando corro apressado em direção ao elevador do meu prédio e esbarro em uma vizinha, a realidade (tudo isso é mesmo real?) me atinge novamente.

A moça sente o impacto e se desequilibra, olhando assustada ao redor. As portas do elevador se fecham e tento acalmar a minha respiração quando percebo que ela não disse uma única palavra, quando o normal seria me xingar aos quatro ventos. Será que… Não, não é possível. Ou é? Dou dois tapinhas no ombro da vizinha e ela olha ao redor fazendo careta. Coloco a mão no seu braço e ela se afasta com um gritinho. Somos apenas nos dois nesse elevador e ela agora se escora contra as portas, seu rosto estampando desespero. Me aproximo dela, tiro uma mecha do seu cabelo que caiu sobre os olhos e aperto seu nariz. A mulher dá um berro no mesmo momento em que as portas se abrem e cai ruidosamente sobre o piso do lobby vazio.

O porteiro vem correndo em direção ao elevador, enquanto a mulher se arrasta para longe dele, em pânico. Saio do elevador antes que as portas se fechem, mas não consigo me mover mais do que isso. A minha vizinha ainda balbucia coisas estranhas no chão quando o porteiro se ajoelha ao seu lado, indagando-a sobre o que aconteceu. A mulher não consegue falar nada coerente e o homem diz para ela não se mexer, que ele vai chamar alguém para ajudá-la. Quando o porteiro se levanta, algo desperta em mim e me coloco em seu caminho. O homem vem apressado em minha direção e esbarra contra mim, quase caindo no chão. O seguro pelos ombros e o porteiro começa olhar ao redor da mesma forma assustada que a vizinha no elevador. Ele tenta se livrar das minhas mãos e quando começo a rir histericamente, tanto o homem quanto a mulher começam a gritar. Solto o porteiro e ele se aproxima novamente da vizinha, perguntando se ela também ouvira as risadas estranhas que vinham do nada.


Continuou rindo enquanto deixo o prédio e o homem e a mulher aterrorizados para trás. Faço outros pequenos testes enquanto ando pelas ruas, mas já estou convencido. Olho vitrines de lojas, esbarro em pessoas. Não consigo ver o meu reflexo e as pessoas não conseguem me ver. De alguma maneira bizarra e incrível me tornei invisível, literalmente da noite para o dia. Caminho sem rumo e sento em um banco quando chego a um parque qualquer. Observo as pessoas andarem, passarem direto à minha frente, sentarem ao meu lado, e não me perceberem. Me contorço de tanto rir quando uma mulher tenta sentar-se no lugar que estou e dá um pulo quando não sente o banco contra o seu corpo e sim outra pessoa quando ela se acomoda no meu colo. Ela se afasta, olhando para o banco como se ele fosse um objeto amaldiçoado. 

Meu celular toca de novo, mas não me importo o suficiente para olhar quem é. Penso em ligar para o trabalho e dizer que estou doente, afinal mesmo que eu vá para lá, ninguém notará minha presença. Surpreendo-me em perceber que não, profundamente, não me importo. Não importo com o trabalho, com meus compromissos e deveres. Penso em minha família, mas decido ignorar o aperto que se forma em meu peito. E se as pessoas que eu amo nunca puderem me ver novamente?

Decido me preocupar com tais questões mais tarde. Eu estou invisível. Não faço ideia de como ou porque. Não sei se será permanente. Talvez eu viva para sempre assim. Talvez isso seja um pesadelo e logo vou acordar. Talvez eu simplesmente tenha ficado maluco. Mas decido não me importar. Decido deixar o difícil para depois e apenas aproveitar, pelo menos por hoje. Penso em todas as coisas divertidas que posso fazer estando invisível. Penso em mil aventuras, penso em tudo o que poderia fazer. 

Contudo, sinto que, pelo menos por agora, quero apenas andar pela cidade sabendo que ninguém está me olhando, me julgando, me vigiando. Eu só quero desfrutar da intensa sensação de liberdade. Quero andar pelas ruas sem preocupação, sem medo. Quero apenas aproveitar o momento, me deliciar com a sensação de estar vivendo algo fantástico, um milagre completamente inesperado. Com a sensação de que, agora, posso fazer o que quiser da vida, que posso dar novos rumos para a minha existência. Talvez eu me transforme em super-herói e salve pessoas, talvez eu brinque de ser um fantasma e passe a assombrar lugares e pessoas. Talvez eu faça um pouco dos dois, talvez eu faça nenhum. Eu estou invisível. Estou invisível e posso fazer o que eu quiser. 


Esse texto faz parte do projeto Desafio de Escrita: 25 coisas sobre as quais escrever em 25 semanas, referente ao nº 3 da lista - Você acordou e, ao olhar no espelho, percebe que está invisível.

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2 comentários:

  1. Oi Ana,
    Que texto maravilhoso e as imagens encaixaram muito bem.
    Adorei o final que ele viu a opção em ajudar, zombar, 'aproveitar' e não se afastar. Já que em muitos casos, na vida real a certa 'invisibilidade' soa negativo.

    tenha uma ótima quarta =D
    Nana - Obsession Valley

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