30.1.16

Desafio de Escrita: Quarto de hotel para um


O barulho lá fora estava mexendo com os seus nervos. O soar incessante do trânsito, das pessoas que têm algum lugar para ir, algum lugar para o qual voltar, ressoava dentro do seu cérebro, cutucando a massa cinzenta como agulhas mal intencionadas e debochadas. Por Deus, por que tantos carros? Tantas pessoas? Por que tanta vida lá fora enquanto dentro do seu quarto de hotel, dentro de si, estava demasiadamente inóspito? 

Levantou-se com impaciência, fechando a janela com um baque estrondoso. Aproveitou e também cerrou as cortinas, cerrando-se no quase silêncio, na quase escuridão. No quarto, agora a meia-luz, voltou a sentar na cama. Recostou-se sobre os travesseiros e prendeu a respiração por alguns segundos, apreciando o ambiente mais calmo. O frigobar emitia um zumbido baixo e a hóspede do andar de cima caminhava de um lado para outro em seus saltos altos. Mas ainda assim estava melhor agora, sem o barulho da cidade irritando seus sentidos. 

Sem o barulho da cidade ressoando pelo seu cérebro, eram os pensamentos que agora regiam a sinfonia infernal em sua mente. As palavras, os sons, os gestos, as lembranças e as imaginações agitavam-se em seus neurônios, exigindo total e completa atenção do seu ser. Em sua mente, os fantasmas dos acontecimentos passados dançavam com as sombras de um futuro idealizado que, provavelmente, nunca aconteceria.

Novamente, como sempre, ali estava, sozinho a imaginar coisas, sozinho a sonhar com pessoas que não existiriam, que nunca lhe tocariam a pele e alma como tanto queria. Novamente, ali estava, amargurando pelo passado imutável, pelas ações congeladas pelo medo, pelos desejos reprimidos em sua mente em noites como aquela, quase silenciosas por completo, quase escuras por completo e sempre completamente solitárias.

Era até engraçado, quando parava para pensar. Morbidamente divertido, solitariamente irônico. Por muitas vezes, por muitos meses e anos, estivera em seu quarto minúsculo, em dias quentes e dias frios, a maquinar incessante por um futuro melhor, um passado diferente. Em sua velha cama de solteiro, cujo colchão de tão usado estava bem mais fundo no meio, em sua conhecida carência de solteiro, imaginara com quem dividiria aquele ínfimo espaço, quem permitiria adentrar no seu sagrado antro de descanso, na sua protegida gaiola de sentimentos.


Esperava e, enquanto esperava, sonhava. Por várias vezes, por meses e por anos. Agora, olha só onde estava, em um quarto de hotel para um. Duas vezes maior que o quarto da sua casa, três vezes mais organizado também e um milhão de vezes mais pessoal, ali estava, um quarto de hotel, tão grande, apenas para um. Um ser humano não completo. Um ser humano em pedaços despedaçados que espalhavam-se pela cama de casal de lençóis brancos e limpos, com cheiro de amaciante de hotel, mas que não a ocupavam totalmente.

Tanto espaço... Tantos espaços vazios naquele quarto de hotel, naquela cama de hotel, na sua alma de casa. Esticava os braços para ambos os lados, na cama, e não havia nenhuma pele macia, molhada de suor ou do banho, para tocar. Não havia ninguém com dividir os lençóis finos para tentar se proteger do frio do ar-condicionado. Não havia ninguém, não havia ninguém. Os corredores assombrados, vazios. Os outros quartos, através de cada porta um universo particular, através de cada porta o silêncio. O frigobar cessara, a mulher dos saltos cessara. Sua sede não. O vazio se expandia dentro de si.

Colocou o rosto entre as mãos, suspirando. Seu suspiro escoa pelas paredes e ricocheteia de volta. Não há nenhum outro corpo para protegê-lo do ataque. Nenhuma outra respiração para feri-lo. Os seus sopros solitários serão seus únicos algozes. 

Apesar do grande espaço em seu exterior, o seu peito se espreme, as costelas esmagam o seu coração. Mas sabem que ele já fora picado em pedaços minúsculos e jogado no lixo há anos. A garganta se fecha e pensa que está morrendo. Envolve os braços ao redor de si mesmo, apenas para, pelo menos na hora de sua morte, não morrer no vazio. Mas os seus próprios braços gelados não substituem o abraço de outro ser vivo. Queria estar morto agora. Sente que já o está. As lágrimas que escorrem-lhe pelo rosto são a única coisa que se move em todo o quarto.

Um quarto de hotel para um, que desperdício. Uma vida inteira de memórias e sonhos, escolhas e acasos do destino, de felicidades e tristezas, de riqueza e miséria. Uma vida inteira, um ser humano inteiro, só para um. Que desperdício. Para que um quarto de hotel tão grande, uma cama tão grande, uma alma tão profunda e imortal, se não há ninguém para compartilhar? 

O silêncio no quarto de hotel é ensurdecedor. Até os sons o deixaram. Levantou-se vagarosamente e abriu novamente a cortina e a janela. Banhou-se nas luzes da cidade, no soar incessante do trânsito, das pessoas que tem algum lugar para ir e algum lugar para o qual voltar. Afogou-se no mar de ruídos do tráfego, da vida e das almas dos desconhecidos. 


Esse texto faz parte do projeto Desafio de Escrita: 25 coisas sobre as quais escrever em 25 semanas, referente ao nº 1 da lista - Sozinho(a) em um quarto de hotel.

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11 comentários:

  1. Adorei!!

    Beijos Mila
    http://dailyofbooks.blogspot.com.br/

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  2. Oi. Adorei a ideia do projeto e seu texto ficou maravilhoso. Acho que até me senti um pouco com o ~personagem;

    Beijos
    SIL ~ Estilhaçando Livros

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  3. A ideia de um desafio assim é bem legal. Espero que consiga fazer ótimos textos para todos os temas hehe. Gostei bastante desse primeiro, da forma como o ambiente foi adoravelmente descrito e as questões internas se misturaram a ele. Ainda bem que um dia resolvi fuçar e encontrar seu blog.

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    1. kkk Obrigada Ritinha! E saiba que é sempre bem-vinda por aqui! Fico muito feliz que tenha gostado, tanto do desafio quanto do texto! <3

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  4. Que texto lindo!!!!!!!
    O projeto é uma ideia maravilhosa, já estou preparando minha pequena contribuição, também. :D

    Beijos
    Te convido a me visitar, também! ♥
    • Sentido Literário •

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    1. Obrigada! Fico feliz que tenha gostado do projeto e quero ver sua pequena contribuição logo! rs

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  5. Oi Ana!
    Aaaah adorei seu texto!!! Estou de boca aberta aqui :O
    Pelo jeito seu projeto de escrita vai render muitos textos bons! Eu quero participar também, mas esse fim de semana nem parei... Vou tentar começar no próximo.

    Beijos,
    Sora - Meu Jardim de Livros

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    1. Ah Sora, obrigada mesmo! Fico muito feliz que tenha gostado! E não deixe de participar mesmo! Quero ver seus escritos!

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  6. Oi Ana,
    Que texto maravilhoso. Já curtindo a ideia do seu projeto!
    Me identifiquei em alguns pontos e me lembrou o quanto crio expectativas sobre algumas coisas e acabo ignorando outras. No fim só resta a solidão.

    Tenha uma linda semana ♥
    Nana - Obsession Valley

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    1. Obrigada Nana! Que bacana que gostou e se identificou com o texto!

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